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domingo, 24 de outubro de 2010

3, Arkadi, uma Nova Vida

3
Arkadi, uma Nova Vida

Q
uando chegaram à cidade, Yoh suspirou pesadamente.
         - Droga – murmurou.
         Agora que ela estava tão perto de Arkadi, tão perto de Londrina, ela não tinha certeza se queria de fato encontrar ambas.
         Algo se remexeu na boca do seu estomago.
         Há quanto tempo ela não comia? Mas isso não era fome. Oh, não. Era receio. Ansiedade. O que aconteceria agora? Era encontrar Londrina e simples assim? Ela a aceitaria numa boa? Ela sequer sabia que Yoh estava indo ao seu encontro?
         - Hum, Yoh?
         - O quê? – Yoh respondeu sem tirar os olhos inquietos da cidade abaixo dela.
         Era só descer a estrada ao lado daquele barranco que então eles estariam em Arkadi.
         Várias casas de alvenaria instaladas à esmo, sem um padrão definido, ao redor do que deveria ser uma praça, não dava para ver naquela escuridão, muito menos com toda aquela chuva.
         Yoh sentia frio. Suas tremiam, mas então ela não tinha certeza se isso era frio.
         Talvez fosse apenas uma reação dos seus sentimentos.
         Um castelo pairava ao longe, no que poderia ser descrito como final da cidade. Além do castelo, era um grande oceano com águas profundas e escuras.
         Grandes muros de pedra cercavam o castelo.
         Era uma estrutura meio gótica, sombria, porém encantadora ao seu modo. Não lhe dava arrepios. Yoh sentia-se... segura. Como se aquele fosse seu lugar. Como se Arkadi fosse seu lugar.
         Ela sentiu um arrepio na sua espinha.
         Não.
         Aquele não era seu lugar. Yofer, aquela era sua cidade. Onde estava sua pequena irmã que chorara tanto a sua partida, onde estava seu irmão mais velhos, Odrik, que não chorara, mas sentira a dor ao seu modo.
         Seus pais não choraram.
         Eles sorriram.
         Foi isso que deixou Yohanna com raiva.
         Porque eles sorriram quando sua filha estava indo embora, deixando sua família e aqueles que ela amava sem nem sequer saber por quê.
         - Yoh, você me ouviu? – Dem pegou-a pelos ombros, virando-a para ele.
         Yohanna piscou algumas vezes, o rancor estava presente no seu coração assim como os seus batimentos cardíacos indicavam sua vitalidade.
         Ela sentia tanta raiva dos seus pais agora.
         Ela sentia raiva dela mesma por se sentir segura em Arkadi.
         Yohanna não queria sentir-se segura ali.
         Não.
         Ela queria apenas odiar aquele lugar.
         - Desculpe – ela disse tentando apagar o tom nervoso na sua voz. Aquela raiva não era dirigida à Dem. Ele fora gentil com ela na medida do possível (ninguém arrancou a cabeça de ninguém), então ela só queria dizer obrigado e ir embora.
         - Certo, tudo bem – ele sorriu e largou-a, dando um passo para trás.
         - O que você estava dizendo? – Yoh incitou.
         - Perguntando se você sabe onde Londrina mora.
         - Hum, isso – Yohanna lutava para manter sua mente focada. – Não, não sei.
         - Certo, quer que eu te leve? – Dem perguntou. – Mas tudo bem se não quiser. É fácil achar a casa dela, todos sabem onde ela mora. Não seria difícil você encontrar outra pessoa pra te ajudar nisso.
         - Tudo bem – Yohanna suspirou e sorriu contra sua vontade. – Não quero ter de passar pela coisa da adaga mais uma vez.
         Dem sorriu com uma pitada de malicia nos olhos vermelhos.
         - Sim, você é tremendamente assustadora com aquela adaga nas mãos.
         Rolei os olhos e novamente contrariada, Yohanna sorriu.
         Quer dizer, não era culpa dela. Era engraçado, de fato.
         Sem dizer mais nada, os dois começaram a descer a rua ao lado. A chuva era ótima, sim, Yohanna sabia que era importante devido ao seu planeta tão seco, mas francamente, isso não precisava deixá-la molhada dos pés a cabeça, como ela estava agora.
         - Hum, Dem? – ela estava tão cansada.
         - O que foi? – respondeu distraído.
         - Porque você estava lá atrás, naquela floresta perigosa sozinho?
         Ele sorriu um pouco quando Yohanna usou seus termos anteriores, mas então o sorriso desvaneceu.
         Ok, aquilo fora estranho. Ele era tão extrovertido e sorridente. Yohanna pode perceber isso sobre a personalidade de Dem na última hora. Mas aquela sombra no seu rosto, aquela expressão tão... dolorida e rancorosa, não era uma coisa que combinasse com o rosto bonito e alegre dele.
         Não, havia alguma coisa por trás daqueles olhos escarlates que ele não havia mencionado e que ela podia ver agora.
         Mas aquilo importava realmente?
         Não.
Não de verdade.
- Caminhando – respondeu finalmente. – Para pensar.
- Eu costumava fazer isso. Em Yofer – Yohanna disse sonhadora, mergulhando em suas recordações mais uma vez.
Ela precisava dormir. Logo.
- Yoh – Dem disse cautelosamente. – Posso lhe pedir uma coisa?
- Claro – respondeu ela sem nem sequer se importar de verdade.
Cansaço era só o que ela conseguia sentir. Duas semanas. Duas semanas inteiras andando. Ela se lembraria como dormir em uma cama?
Oh, ela iria. Ela iria sim. Ela podia sentir o lençol macio e suave sob seu corpo...
- Não conte a ninguém que eu estive com você – Dem disse sem rodeios. – Não conte nada sobre mim, na verdade. Será melhor para você nem mencionar que você me conhece.
Agora o cansaço não era mais prioridade.
Yohanna encarou o rosto de perfil de Dem.
- Por quê? – perguntou ela.
Curiosidade era uma coisa surpreendentemente tentadora.
- Porque sim. Você logo irá saber, pra ser sincero.
Ela ergueu uma sobrancelha.
Definitivamente o cansaço não era mais uma prioridade.
- Como assim? Saber o quê? – indagou.
Dem murmurou o que Yohanna achou ser um palavrão e então encontrou os olhos dela.
Aquele vermelho – aquele vermelho que de inicio ela temera – estava tão vulnerável naquele instante que ela vacilou por um segundo.
Entretanto, eram apenas os olhos que demonstravam tal vulnerabilidade. Sua expressão era dura e sua voz ainda mais.
Mas os olhos... Yohanna podia ver o que ele sentia só pelo brilho tão triste neles.
- Provavelmente você irá saber pela manhã. Você nem vai querer falar comigo outra vez quando souber disso.
- Acho que sou madura o suficiente para responder por mim – Yohanna respondeu um pouco contrariada.
Ela nunca acreditou em boatos, mesmo em Yofer que era uma cidade tão pequena que boatos eram a distração mais divertida que as senhoras de mechas brancas em seus cabelos escuros ou claros praticavam.
Yohanna sabia muito bem discernir fatos de boatos. Ela também tinha idade o suficiente para escolher no que acreditar.
Dem abriu um pequeno sorriso torto. Como o primeiro sorriso que ela o viu abrir.
- Resignada, também – ele disse. – Teimosa e resignada, mais alguma coisa? Ah, claro, determinada para vir de Yofer até aqui sozinha.
         Ela permaneceu em silêncio enquanto ele falou. O que ela diria? Ela não tinha nada a dizer.
         Ela apenas queria saber sobre as coisas. Ela queria saber sobre sua vida. Queria saber que boato era esse do qual Dem tanto falava. Queria saber quem diabos era Londrina e porque ela quem cuidaria de Yohanna.
         Quer dizer, se cuidaria.
         E isso era um grande se.
         Deméter sorriu e rolou os olhos.
         - Você nem está me ouvindo – disse, mas não estava se queixando. Yoh corou um pouco. Ela não estivera ouvindo mesmo. Estava ocupada demais tendo pena de si mesma. – Apenas não diga sobre mim. Não toque no meu nome. Vai ser melhor para você.
         Sem mais nada para dizer ao estranho Dem, Yoh apenas concordou com a cabeça, abalada demais com o que lhe esperava mais a frente.
         Ela esperava não ter um grande susto. Na verdade, ela esperava que Londrina deixasse-a dormir numa cama quente e confortável. Ela esperava que tivesse roupas secas, tendo em vista que as que estavam em sua mochila estavam completamente encharcadas aquela altura.
         Yohanna estava começando a tremer. Ela estava com tanto frio.
         Os pés dela faziam um barulho engraçado quando pisavam na lama, assim como os de Dem. As botas de ambos estavam cheias de água. Yoh sentia as poças sob seus pés. Ela teria bolhas.
Isso era perfeito, de um modo irônico, obviamente.
Arkadi era uma cidade grande, agora que ela olhava de perto. Sem comparação com Yofer. Yofer era um vilarejo, lugar onde os retirados moravam. Quem não queria participar da monarquia e dos assuntos da realeza, simplesmente se recolhia em cidades tão afastadas que as conseqüências e as ordens não chegavam tão longe.
Os pais dela não gostavam muito de seguir regras, por isso foram para Yofer.
Yoh nunca viu problemas, mas também nunca gostou muito da idéia de pessoas ditando o que você tinha de fazer.
Parecia pouco justo.
Mas, se não fossem os reis, príncipes, duques e marqueses, quem manteria a ordem e cortesia dentre as pessoas? Se não existisse a realeza, Yoh apostaria tudo que lhe restara – que não era nada, na verdade – que haveria gente se matando para conseguir o poder.
Tolos, era só o que ela pensava deles.
O castelo se agigantava perante aquela cidade, ao longe, mas imponente. Seus grandes muros deixavam claro que lá só entraria convidados.
Não que Yoh quisesse pisar lá.
Nunca, na verdade. Ela nem sequer pensou nisso. O que teria lá? Um monte de pessoas mesquinhas que adoram enfeitar as paredes com ouro e sentar em tronos de bronze com tiaras de prata sobre as cabeças?
É, Yohanna não tinha tais ambições fúteis e tolas. Ela apenas queria viver à sombra, se possível. Ela não queria atenção em demasia. Ela preferia não ser notada.
Não que ela achasse que alguém olharia para ela. Exceto Dem. Mas então eles estavam os dois numa floresta sozinhos. Se ele não olhasse para ela, olharia para o coelho. E Yoh achava que era um pouco mais atraente que um coelho.
Mas o que então ela sabia sobre isso?
Absolutamente nada.
- A casa de Londrina é a mais perto dos muros do castelo – Dem quebrou o devaneio de Yoh, tirando-a de uma sufocante apreensão.
Ela olhou para ele em meio aos pingos de chuva que deixavam tudo tão molhado e difícil de ver.
- Hum – Yoh balbuciou. – Acho que posso encontrar sozinha.
Dem sorriu.
- Não, você não pode – disse. – Há tantas casas aqui, Yoh. Praticamente o triplo do triplo do que você via em Yofer.
Yoh olhou fixamente para as monstruosas construções a sua frente. Tudo tão mais rico, tão diferente do pequeno e modesto vilarejo onde todos dividiam o leite e os pães.
Ali, parecia ser cada um por si. Nada de cafés da manhã comunitários nos domingos. Nada de divisão de leite e pão.
Ela engoliu em seco.
- Eu te acompanho até lá. Não é tão longe quanto parece – disse Dem.
Yoh só foi capaz de assentir, sem confiar na sua voz.
Seu peito se contorceu de saudade de sua família. Yofer, sua pequena e amada terra. Seu lar.
- Yohanna!
Yoh ergueu a cabeça completamente confusa com o chamado. Não havia ninguém na rua àquela hora da noite, as luzes das casas estavam a maioria acesas, mas nenhuma pessoa na rua.
Mas então ela conhecia a voz.
Dem a encarou meio confuso, depois estreitou seus olhos para a noite.
- Parece que alguém conhece você – ele disse.
Yoh olhou para os lados, seu coração transbordando de esperança. Ela não estava tão só então.
O homem com cabelos loiros e mechas azuis saiu da escuridão carregando um lampião aceso numa das mãos. O sorriso convidativo, de boas vindas. O homem lindo que a esperava.
Ela sorriu amplamente, seus lábios desacostumados aquela ação parecia doer com o ato.
- Odrik! – ela exclamou e foi de encontro com o homem de vinte anos, olhos tão azuis quanto as mechas em seus cabelos.
Seu irmão, seu irmão Odrik estava ali. Ela nem conseguia acreditar.
Yoh jogou seus braços ao redor da cintura do homem – era só onde ela alcançava com seu diminuto tamanho. Seu irmão não era mais alto que Dem, mas era mais alto que ela. 1,85m, bem distribuídos. Suas mãos grandes pousaram em suas costas e lhe acariciaram.
Odrik estreitou seus olhos para enxergar alguns metros a sua frente.
- Quem é aquele? – perguntou.
- Hum, ele me ajudou a encontrar o caminho, na verdade – Yoh respondeu e se virou. – Dem!
Deméter, que já estava indo embora, parou abruptamente e virou para encará-la. Ela não podia dizer ao certo sua expressão com toda aquela chuva e escuridão.
- Yohanna – disse Dem, sua voz calculada, seus olhos escarlate indo de Odrik para ela.
- Obrigada – disse Yoh ainda com seu sorriso enorme nos lábios. – Esse é meu irmão, Odrik.
A expressão dele não se alterou. Ele olhou para Odrik, fez um aceno de cabeça e então continuou andando, fazendo seu caminho para qual seja sua casa.
Yohanna olhou para seu irmão mais velho.
- Odrik – ela disse com alivio, toda a tensão daquelas duas semanas, todo o medo de ficar sozinha exalando. – Tão bom ver você.
Ele sorriu.
- Eu sei – provocou. – Difícil ficar longe de mim.
Yoh rolou os olhos. Não queria começar a discussão de sempre. Seu irmão era tão metido. Eles sempre começavam uma discussão toda vez que uma brincadeira dessa vinha à tona.
Mas Yoh não queria brigar agora. Não quando estava tão feliz em vê-lo.
- Vamos, esta chovendo muito – Odrik puxou-a para debaixo de seu grande casaco de pele de animal. Era grande e marrom, fofo e quente. Ela agradeceu internamente pelo calor e pela secura do seu interior. – Tudo bem com você?
- Sim – Yohanna suspirou e sorriu como uma boba novamente. – Agora está tudo bem.

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