Páginas

domingo, 24 de outubro de 2010

1, Estranho na Floresta

1
Estranho na Floresta

T
udo era tão novo e Yohanna estava surpresa de ter vivido quinze anos ali e nunca ter percebido o quão vasto o mundo era.
         Ela tinha saído do âmago e da segurança da sua pequena cidade natal. Ela tinha deixado seus pais. Por causa de suas promessas – promessas de seus pais, não dela.
         Yohanna sentia que devia ter alguma consideração para com eles. Mas eles nunca lhe disseram o que ela teria de fazer, o porquê prometeram-na ou qualquer outro tipo de explicação.
         Eles apenas disseram: “Yohanna, chegou a hora”.
         E ela teve que ir.
         Deixar sua vida, seus amigos. Sua família.
         Anabette e Octus, seus pais, apenas lhe deram o endereço, as coordenadas de onde ir.
         “Encontre Londrina, Yohanna, ela cuidará de você em Arkadi”.
         Era fácil para ela dizer, já que não fora ela a prometida e não seria ela quem teria aquele destino.
         Seria Yohanna, não sua mãe.
         Agora estava ela lá, parada entre uma divisão na estrada de terra batida, no meio da floresta tropical, úmida que a fazia sentir tanto calor. Ela tinha dois caminhos – sem a menor idéia de qual dos dois pegar.
         - Droga – Yohanna suspirou e baixou seus olhos violeta para o pedaço amassado e amarelado de papel em uma das suas mãos com unhas pintadas de preto.
         Não havia nada que indicasse essa encruzilhada. Nenhum rabisco parecido com um Y, nada que sequer indicasse que ela teria de escolher uma estrada.
         Maravilha.
         Só faltava ela estar perdida.
         - Droga – repetiu num tom mais alto e bufou com raiva.
         Yohanna jogou sua mochila cheia e pesada sobre as raízes sobressalentes de uma árvore com folhas amarelas vibrantes e sentou-se lá também.
         Estava cansada. Quanto ela caminhara desde a última vez em que parou para descansar? Yohanna sequer lembrava. Ela saiu de manhã bem cedo, ao nascer do sol, e caminhara desde então sem nenhuma pausa.
         Agora, fim de tarde, ela pensara que tinha o direito de descansar um pouco.
         Apenas alguns minutos, só para retomar o fôlego.
         Se ela ainda estivesse em Yofer, com seus pais, ela não estaria cansada agora. Ela estaria pronta para um banho e para o jantar em família, com sua irmã e irmão, prontos para fazer qualquer coisa legal depois da noite cair.
         Uma vida comum que Yohanna sempre achou boa o suficiente para não ficar ansiando deixar.
         Ela queria estar lá, em Yofer. Não aqui, no meio do nada, sem saber pra onde ir.
         Ela sequer sabia se estava perdida. Ela suspeitava que sim, já que no seu mapa improvisado – feito por sua mãe, Anabette – não havia um Y.
         Era tudo o que ela precisava, estar perdida.
         Ela levantou seus olhos para o céu, observando o céu azul límpido transformar-se e laranja enquanto o sol se punha.
         Nuvens amantes brancas, agora rosadas, flutuavam preguiçosamente sobre a copa das árvores de diferentes cores, diferentes tonalidades.
         Seu mundo, Aurora, era magnífico. Diferente, misterioso, porém lindo.
         Yohanna amava seu mundo como amava sua família, como amava a si mesma.
         Distraída, um leve e sereno sorriso brotou em seus lábios, enquanto suas pálpebras cediam à exaustão de seu corpo pequeno. O farfalhar das folhas das árvores, o perfume estonteante das flores mais belas do universo invadiram seu olfato.
         Um barulho de galhos quebrando chamou sua atenção, despertando-a do seu devaneio, fazendo-a abrir seus olhos assustada e temerosa.
         Yohanna não sabia muito sobre Aurora, não vivera além dos portões de Yofer, mas um aviso de seu a tinha deixado com os cabelos da nuca arrepiados: “Cuidado lá fora, Yohanna. É perigoso”.
         Aquilo fez Yohanna pensar que não sabia sobre nada além de Yofer e que estava prestes a começar uma jornada completamente nova e surpreendente para ela.
         Ela ficou com medo, na verdade.
         Não ignorando o aviso de seu pai, Yohanna colocou-se de pé num pulo, esquecendo seu medo e sua insegurança, olhando ao redor com atenção e precaução, apertando a adaga de prata que seu pai lhe entregara antes dela partir.
         Ela não falou. Ela não pediu o nome de ninguém. Ela apenas olhou e procurou por algo fora do comum.
         Seus olhos estreitados quase como fendas lhe permitiram um deslumbre de algo – ou seria alguém? – se escondendo atrás de um tronco de árvore.
         Ah. Que ótimo.
         - Você – agora ela falou, sua voz saindo um pouco rouca pela falta de uso. – Saia daí agora.
         Foi surpreendente para Yohanna o tom autoritário que sua voz adotou sem seu próprio consentimento.
         Nada em resposta.
         Yohanna começou a pensar se não tinha imagino aquele barulho e aquele movimento, se não era apenas impressão sua, quando então a figura mostrou-se.
         Estava meio escuro, o sol já estava quase completamente sumido, então ela não conseguiu obter uma definição exata de quem era, exceto se ela estreitasse seus olhos, e foi o que Yohanna fez.
         Era um homem. Não, não um homem. Um garoto. Talvez dezesseis anos, talvez dezessete, ele era alto, bem mais alto que ela, e tinha com certeza mais, músculos que Yohanna, então ficava difícil dizer sua idade certa.
         Seu cabelo era castanho com mechas vermelhas – todos tinham mechas coloridas. Os fios eram bagunçados, curtos, até um pouco acima de suas orelhas. Algumas mechas eram mais compridas do que as outras, caindo sobre sua testa até seus olhos. Seus olhos eram vermelhos também, assim como as mechas em seu cabelo.
         O rosto era angular, feições duras e fortes, marcantes, como se ele já tivesse vivido coisas demais. Aquilo o deixava mais maduro, mais velho.
         Ele era bonito, porém isso não amenizava o fato dele ser um estranho.
         - Quem é você? – perguntou Yohanna, sua voz esbanjando resignação.
         Ela estava um pouco aliviada de não ser nenhum animal com garras afiadas que pudesse devorá-la em duas dentadas.
         Então seu antigo pânico retornou quando ela se deu conta de que ele poderia fazer a mesma coisa, só que em vez de dentadas ele lhe daria facadas.
         Yohanna engoliu em seco enquanto esperava o estranho respondê-la.
         O garoto ergueu suas mãos para o ar, em sinal de rendição, coisa que aliviou o pavor não expressado de Yohanna apenas um pouco. Aquilo não significa que ele não iria fazer nada. Podia ser um blefe.
         - Calma lá, garota – ele disse, com um dos cantos da boca com lábios rosados e cheios levantando-se em um pequeno sorriso torto.
         Sorriso que revelava dentes brancos e perfeitos, sorriso brilhante e bonito.
         Características que não diminuíram sua periculosidade.
         “Não se engane com a beleza” sua mãe lhe disse. “Eles podem ser bonitos”.
         “Quem mãe?” Yohanna sussurrara para a mãe, com um pouco de medo em seu coração.
         “Os monstros”.
         - Quem. É. Você? – Yohanna enunciou cada palavra com firmeza, sem espaços para qualquer pergunta ou brecha para amizade.
         O garoto pareceu achar aquilo levemente engraçado, já que seu sorriso aumentou. Porém, Yohanna julgou não ser tão hilariante assim, já que, mesmo com dois metros lhes separando, ela podia ver que seus olhos rubros ficaram tristes. Ou, até mesmo, raivosos.
         - Não vou te machucar – ele garantiu sem abaixar as mãos, avançando alguns passos para perto dela.
         Ele usava uma calça de malha preta com uma camiseta branca com um colete também de malha preta por cima, desfiada em suas mangas obviamente cortadas. Seus pés estavam calçados com botas de cano médio, grossas e grandes, que fizeram um estardalhaço ao pisar nas folhas secas sob seus pés.
         Ela pode vê-lo mais claramente quando ele ficou sob a luz do luar em meio a todas aquelas árvores.
         Quando o garoto desconhecido ameaçou dar mais um passo em sua direção, Yohanna ergueu um pouco mais sua mão que segurava a adaga.
         Ela tentou esconder o fato de que seu corpo inteiro tencionara-se com medo, fazendo parecer que havia sido de raiva. Ela suava um pouco sob a blusa laranja coberta com um colete preto que ia até metade de seu abdômen. Suas pernas estavam cobertas com uma calça de malha preta e ela usava botas de cano longo na mesma cor.
         Ela sentia-se mais confortável e segura vestida daquele jeito.
         Mas isso não foi suficiente naquela noite.
         - Ei, calma, não vou te fazer mal, já lhe disse – o garoto disse e parou de tentar alcançá-la.
         - Então me diga seu nome – Yohanna falou.
         - Deméter Hermmom – disse ele com as mãos fixas no alto de sua cabeça. – E o seu?
         Era seguro dizer seu nome? Claro que era. Yohanna repreendeu-se mentalmente por ser tão profundamente paranóica.
         - Yohanna Bourbon – respondeu.
         O garoto sem nome – Deméter – sorriu com todos os dentes.
         Aquele sorriso acendeu seu rosto que, antes, Yohanna julgara cansado.
         - E o que você faz aqui, pequena Yohanna Bourbon?
         - Isso não é da sua conta – Yohanna retrucou. Ele ainda era um estranho, mesmo que ela soubesse seu nome.
         E se ele fosse um dos monstros dos quais sua mãe lhe alertara? E se seu nome não fosse Deméter?
         - Eu te disse que não a machucaria, Yohanna. Pode abaixar sua adaga.
         - Claro, e então você me ataca – ela rolou seus olhos violeta. – Bem típico.
         Ele riu.
         - Certo – Deméter disse. – Você terá de confiar em mim nessa.
         Yohanna olhou fixamente para Deméter. Ele era grande – alto e musculoso – e aquilo a deixava um pouco... amedrontada, talvez. Não, não era essa a palavra. O tamanho dele não a intimidava, apenas deixava-a... desconfiada. Era isso.
         Mas então ela olhou seus olhos e o sorriso em seus lábios. Os olhos dele fizeram brotar um arrepio em seus braços. Escarlates. Tão diferente. Ela nunca vira olhos escarlates em ninguém mais, assim como nunca vira nenhum par de olhos violeta, mas então ela nunca viajara para fora de Yofer.
         Yohanna tomou uma decisão.
         - Tudo bem – ela disse. – Mas você tem dar sua palavra de que não irá pular em cima de mim – ela pausou um instante e acrescentou: – E nenhum dos seus amigos, caso tiver algum escondido atrás de alguma árvore por aqui.
         Deméter riu a menção da condição que Yohanna empunhara.
         - Amigos – ele disse a palavra com um humor negro. – Certo. Tudo bem, eu lhe dou a minha palavra de que nada de ruim vai acontecer a você enquanto estiver comigo.
         Yohanna vacilou.
         Quando alguém dava sua palavra à outro alguém, era algo importante. Realmente importante. Não havia como fugir disso. Não havia como quebrar sem ferir a si mesmo no processo.
         Se a promessa fosse quebrada, ambos sofreriam. Sofreriam uma dor física e mental.
         As conseqüências que tornava arrepiante e incogitável a opção de quebrar uma promessa.
         Lentamente, Yohanna abaixou sua mão e guardou a adaga ao cinto. Deméter imitou-a e abaixou suas mãos também.
         - Tudo bem, agora que estamos sem objetos pontiagudos nas mãos, você podia me dizer por que esta no meio de uma floresta perigosa – ele olhou significativamente para Yohanna. – E sozinha.
         - Eu podia perguntar o mesmo de você – Yohanna retrucou.
         Ele reprimiu um sorriso e aproximou-se dela.
         - Certo. Eu quero ajudar você. Mas para isso acontecer, você deve me dizer no que você precisa ser ajudada.
         - O que me faz perguntar por que você quer me ajudar.
         Deméter balançou a cabeça.
         - Yohanna, eu lhe dei minha palavra. Você sabe o que isso significa, não é?
         Yohanna assentiu com a cabeça.
         - Então porque tanta desconfiança? – ele perguntou claramente confuso e impaciente.
         Yohanna sentiu-se um pouco ofendida com a pergunta idiota.
         - Bem, porque eu não conheço você, talvez? – irritação resplandeceu em seu tom. – Por que nunca vi você em toda minha vida e porque também nunca vi ninguém com... olhos vermelhos?
         Aquilo pareceu ter atingido um nervo, tal a maneira como os ombros de Deméter tencionaram e em como suas sobrancelhas escuras uniram-se e seus olhos estreitaram-se, faiscando um pouco.
         - Eu também nunca vi ninguém com olhos roxos – ele soou nervoso, mais irritado do que a própria Yohanna se sentia.
         Ela bufou.
         - É violeta – ela corrigiu com petulância, erguendo seu pequeno queixo.
         Ele rolou os olhos.
         - Tanto faz – disse. – Eu devia me sentir da mesma forma e relação à você.
         Certo, ele tinha um ponto. Mas ele tinha que admitir que violeta não era assustador e nem tão medonho quanto vermelho.
         Mas Yohanna não ia falar isso, claro.
         - Estou perdida – admitiu, porém, com o queixo erguido, sem parecer que foi realmente uma desistência.
         Bom, não funcionou tão bem quanto ela planejou.
         - Perdida? – ele sorriu.
         - É! – ela exclamou frustrada e deu-lhe as costas, jogando sua mochila por cima do ombro e começando a voltar para a estrada.
         Seus planos eram uma saída mortalmente dramática. Foi bem trágico para ela quando esse plano dissolveu perante a divisão na estrada.
         Contando até dez mentalmente, fechando e abrindo os olhos várias vezes, ela virou para Deméter que estava perfeitamente parado onde estivera há cinco segundos, seus braços cruzados no peito e um sorriso presunçoso no rosto.
         - Droga – Yohanna murmurou para si mesma. – Você, hum, por acaso sabe para que lado fica Arkadi?

Nenhum comentário:

Postar um comentário