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domingo, 24 de outubro de 2010

4, Confusa e Perdida

4
Confusa e Perdida

O
drik apagou seu lampião, colocou-o numa mesinha de madeira escura no canto da pequena sala de entrada e então tirou seu sobretudo e pendurou-o num dos cabides da entrada.
         As paredes daquela pequena sala eram brancas, a porta de entrada era de vidro, a outra porta, a qual dava a acesso ao restante da casa, era apenas um batente marrom escuro.
         - Pronto – Odrik disse com sua voz grave, olhando através do batente, parecendo procurar alguém. – Está em casa, Yohanna.
         Yoh suspirou cansada.
         Ela sentia-se exausta. Moída por dentro. Parecia que tinha ficado de pé um mês inteiro. Ela queria jogar-se numa cama e apenas dormir dois anos.
         - Venha, acho que é melhor você tomar um banho quente e então descansar. Não se preocupe, Londrina não esta aqui hoje. Ela vai chegar tarde – refletiu Odrik.
         - O que aconteceu? – Yoh ergueu as sobrancelhas.
         - Nada – Odrik deu de ombros. – Ela apenas foi até o palácio ver o rei.
         Os olhos de Yoh ficaram ligeiramente mais abertos.
         Londrina – sua tutora – possuía toda essa influência ao ponto de ir até o palácio falar com o rei no meio da noite?
         Ela só conseguia pensar numa coisa: Uau.
         Mas Yohanna não tinha energia para expressar seus sentimentos naquela hora. Ela apenas assentiu em concordância.
         Ela precisava mesmo tomar um banho quente e descansar eternamente.
         A sala de estar de Londrina era ampla e convidativa, havia sofás vitorianos com estofado cor de creme, detalhes em dourado envelhecido. O tapete no centro do cômodo era felpudo, na mesma cor que as almofadas no sofá. A lareira jazia apagada na parede mais afastada, apagada até o fim do verão, que estava próximo. A chuva torrencial deixava isso bastante claro.
         A escada que ficava naquela sala possuía uma curva para economizar espaço, o carpete era creme, e a madeira dos degraus, assim como o assoalho, era escura.
         No andar de cima, havia um corredor com paredes brancas, o quarto de Yohanna era a última porta. Odrik a deixou bem na frente e entrou no seu quarto, que era defronte para o dela. Havia mais três portas naquele corredor. Yoh suspeitou que fossem mais quartos.
         Mas do que ela sabia?
         Dando de ombros, ela entrou em seu quarto.
         Seu quarto.
         O termo coçou em sua língua. Em Yofer ela dividia um quarto com sua pequena irmã, Fanniz. Agora ela tinha um quarto daquele tamanho apenas para ela.
         Parecia tão egoísta usar todo aquele espaço para uma pessoa apenas. Mas então Yoh pensou novamente. Ela estava em Arkadi, não Yofer. Arkadi era uma cidade grande, um grande centro, a cidade do rei, onde residia o palácio e toda a sua realeza.
          Quer dizer, a realeza que gostava de Arkadi, já que muitos duques preferiam outras cidades maiores. Pelo menos foi isso que Yohanna escutou durante seu caminho até Arkadi.
         O quarto de Yohanna era claramente feminino. Era decorada com papel de parede roxo, quase no mesmo tom de suas mechas e de seus olhos. A roupa de cama era da mesma tonalidade. As cortinas eram de um tom mais escuro.
Havia uma escrivaninha perto da cama de casal, sob a janela do quarto, com um lampião sobre ela. Um armário relativamente grande para guardar roupas. Mas então Yoh não ocuparia nem um terço de todas aquelas prateleiras e cabides para guardar suas roupas.
Ela sequer tinha um vestido de baile.
Mas então ela nunca teve motivos para ter um. Ela nunca fora num baile antes e não via porque iria a um agora.
Balançando a cabeça ela abriu a porta que dava para seu banheiro. Uma banheira de cerâmica embutida à parede com uma ducha em cima. O boxe era de vidro. Uma pia e o vaso sanitário. Ambos de cerâmica.
As paredes eram de ladrilhos brancos, assim como o chão.
Ela ligou as torneiras e esperou a banheira encher.
Água quente. Ela não tinha água quente desse jeito em Yofer. Yohanna sempre tinha de esquentar sua água no fogo se quisesse um banho quente. Ali não. Na cidade real, a água quente saia dos canos.
Em Yofer eles não tinham água encanada. Nada de canos. Um poço para a comunidade inteira.
Tudo era tão diferente.
Será que Odrik já tinha se acostumado a isso? A todo esse... luxo? Yohanna tinha suas duvidas de que ela iria se acostumar a isso. Era bonito, sim, mas não era seu lar. Não era sua casa.
Era a casa de sua tutora, Londrina, não dela.
Yohanna tirou suas roupas molhadas e as largou dentro da pia para não molhar o chão seco. Então ela largou sua mochila também molhada num canto do banheiro pequeno.
Ela entrou na banheira, a água quente fazendo seu corpo formigar em satisfação. Ela sentou-se e então fechou seus olhos.
Tudo tão diferente.
Tudo tão novo.
Ela estava com medo.
Medo do que estava por vir.


Na manhã seguinte, Yohanna acordou com dores nas suas pernas. Suas panturrilhas reclamavam a distância percorrida.
         Ela vestiu uma calça de linho preta e uma blusa de linho branca que haviam secado durante a noite. Por cima ela colocou um colete de couro preto. Ela gostava de coletes. Eram bonitos. Calçou suas botas e então ela desceu, seu estomago reclamando comida que não fossem vegetais ou frutas que ela comera durante duas semanas inteiras.
         Ela precisava de algo que realmente sustentasse.
         - Bom dia, minha senhorita – uma mulher com cabelos grisalhos com suaves mechas pretas, presos num firme coque no topo de sua cabeça disse sem se virar da bancada onde estava cozinhando algo realmente cheiroso.
         A mulher vestia um vestido bordô, com um avental branco por cima de toda sua roupa.
         - Bom dia – Yohanna disse sem saber ao certo se a mulher se referia a ela quando disse “minha senhorita”.
         A mulher virou-se para revelar um rosto com rugas na testa, olhos pretos no mesmo tom suave de suas mechas, um rosto vivido, que carregava a aura de quem já vivera muitos anos cozinhando naquela cozinha.
         - A senhorita demorou a chegar – disse a mulher com um tímido sorriso. – Seu irmão chegou há três noites montado em um cavalo.
         - Ah – Yoh disse. – Por isso então. Eu não tinha cavalo algum.
         A mulher pareceu espantar-se.
         - Você não sabe montar, senhorita? – ela pareceu incrédula.
         - Não, eu sei montar – Yoh sorriu meio sem graça. – Tive aulas com um mentor, aulas de montaria e combate, desde que tinha nove anos, mas minha família não tinha um cavalo para eu viajar.
         A expressão da senhora suavizou e então ela sorriu.
         - Mas a senhorita chegou, enfim – disse. – Vamos servir-lhe uma omelete enquanto senhora Londrina não desce. Aliás, eu me chamo Héstia.
         Yohanna sorriu aliviada.
         - Obrigado, Héstia.
         Comida. Comida de verdade.
         Aquela omelete parecia a coisa mais gostosa do universo quando Yohanna levou uma garfada a boca e esta chegou ao seu estomago.
         Héstia serviu um copo de suco de laranja fresco para Yoh e ela não podia desejar coisas melhor do que aquela.
         Quando terminou, Yohanna ficou feliz de ficar sentada ali, conversando com Héstia, enquanto Londrina e nem Odrik desciam.
         - Oh, Héstia – uma voz feminina muito jovem para ser de uma tutora, exclamou deliciada ao entrar na cozinha. – Sua omelete? Eu adoro sua omelete.
         - Senhorita Pandora – Héstia sorriu e serviu mais um prato com omelete e mais um copo com suco de laranja.
         Yohanna virou-se para ver quem era a garota que adentrara na cozinha. Pandora tinha cabelos longos e escuros, profundamente lisos, com mechas vivamente laranjas. Seus olhos eram laranja também. Seus lábios eram finos, mas eram bastante rosados.
         Ela usava uma calça jeans azul claro e uma blusa de malha branca, simples, com sapatilhas brancas.
         - Oh – Pandora disse quando avistou Yohanna, abrindo-lhe um grande sorriso. – Você deve ser Yohanna. Muito prazer. Seus olhos são tão legais!
         Pandora lhe estendeu a mão direita e Yoh levantou-se para apertá-la, com um sorriso pequeno e tímido nos lábios.
         Ninguém nunca lhe dissera que seus olhos eram legais. Quer dizer, todos lhe conheciam em Yofer, estavam acostumados ao seu violeta desde que ela era um bebê. Mas então na noite anterior, Dem lhe disse que ele nunca tinha visto ninguém com olhos violeta antes. e ele vivia numa cidade grande.
         - Vejo que já conheceu a pequena Yohanna – disse uma mulher alta, esbelta, rosto triangular, lábios finos como os de Pandora, feições parecidas com as dela, cabelo escuro e liso como o de Pandora, com mechas laranjas e olhos laranjas numa tonalidade remotamente mais suave que a de Pandora.
         Yoh não precisou pensar muito para associar que aquela mulher era Londrina e Pandora era sua filha.
         - Sim, mãe – Pandora disse e acomodou-se em sua cadeira junto à mesa. – Agora preciso comer, se ninguém se importa.
         Londrina sorriu ternamente e rolou os olhos.
         - Sou Londrina Kaylt, sua tutora, mas disso você já deve saber – disse a mulher com olhos laranja.
         Yohanna sorriu novamente e agradeceu internamente pela mãe não demonstrar o mesmo interesse que a filha pelos olhos violeta dela.
         - Hum, sou Yohanna Bourbon – ela disse tolamente. – Mas você já deve saber, também.
         Londrina acenou e sorriu mais uma vez antes de ir até a mesa e sentar-se junto da filha. Nisso tudo, Odrik resolveu aparecer com seus cabelos loiros e azuis despenteados.
         Quando ele passou por Yohanna na cozinha, ele pareceu sentir a necessidade louca de bagunçar o cabelo de sua irmã também. Yoh fez uma careta e então suspirou, rolando os olhos.
         - Querida – Londrina disse e Yoh surpreendeu-se ao descobrir que Londrina estava se referindo a ela e não à Pandora.
         - Sim? – Yohanna respondeu com uma pergunta, atordoada demais com aquele afeto para dizer algo mais coerente.
         - Você poderia vir comigo até o escritório? – Londrina sorriu um pouco. – Preciso falar com você.
         Yohanna assentiu meio confusa, porém, ela não devia ter se surpreendido tanto com aquele convite. Era de se esperar que Londrina quisesse falar com ela.
         Embora o quê, ela não tinha certeza.
         - Claro – Yoh disse.
         Londrina levantou-se da mesa e Pandora a encarou perplexa, assim como Héstia fez.
         - A senhora não vai tomar seu café, senhora Londrina? – Héstia perguntou tentando controlar sua perplexidade.
         Hum, aparentemente Londrina não deixava suas refeições intocadas.
         - Comerei mais tarde, Héstia – disse ela calmamente, como se não notasse a nuvem de perplexidade ao seu redor. Apenas Odrik parecia realmente alheio a tal nuvem, mas ele estava devorando sua omelete, então ele não contava. Yohanna tinha uma teoria de que o irmão entrava em algum tipo de transe quando estava ingerindo algum tipo de alimento.
         Ao que tudo indicava, ela estava certa o tempo todo sobre isso.
         Londrina conduziu Yohanna até uma porta que ela não havia notado antes, na sala de estar, dando vista a uma pequena sala com uma escrivaninha no centro e prateleiras cheias de livros nas paredes. Londrina fechou a porta quando entrou.
         Ela sentou-se na cadeira de couro atrás da escrivaninha e fez sinal para Yoh sentar-se a sua frente. Yoh o fez.
         - Yohanna Bourbon – Londrina disse.
         Yoh achou que ela estava apenas tentando achar um meio para começar a conversa, assim, permaneceu em silêncio até que Londrina começasse a falar novamente.
         - Você sabe por que seus pais lhe mandaram para cá, Yohanna?
         Londrina estreitou os olhos com cautela do outro lado da mesa. Yoh negou com a cabeça.
         - nada exceto que tudo tem a ver com uma promessa que eles fizeram – disse Yoh. – Eu também não sei por que Odrik veio, já que eles não me disseram sobre isso.
         A mulher assentiu.
         - Quando você deixou Yofer, mandei uma mensagem a Anabette e pedi para que mandassem Odrik também, apenas para você não sentir-se tão só.
         Yohanna assentiu com a cabeça.
         Tudo bem, até aí, ela podia engolir. Mas então alguém lhe diria por que ela estava ali afinal de contas?
         - Tudo bem – Yoh fechou os olhos e os abriu em seguida. – Certo, eu j agüentei tanto. Peço desculpas por ser tão direta, mas eu preciso saber por que eu fui mandada embora da minha própria casa. Eu preciso saber o que é essa promessa.
         Atenta e cautelosa, Londrina assentiu.
         - Eu sei. Foi por isso que lhe chamei aqui para o escritório – Londrina levantou-se e depois de roçar com os dedos alguns exemplares, ela tirou um velho livro empoeirado de uma das prateleiras, colocando-o sobre a mesa e voltando-se a sentar. – Eu vou lhe contar tudo.

3, Arkadi, uma Nova Vida

3
Arkadi, uma Nova Vida

Q
uando chegaram à cidade, Yoh suspirou pesadamente.
         - Droga – murmurou.
         Agora que ela estava tão perto de Arkadi, tão perto de Londrina, ela não tinha certeza se queria de fato encontrar ambas.
         Algo se remexeu na boca do seu estomago.
         Há quanto tempo ela não comia? Mas isso não era fome. Oh, não. Era receio. Ansiedade. O que aconteceria agora? Era encontrar Londrina e simples assim? Ela a aceitaria numa boa? Ela sequer sabia que Yoh estava indo ao seu encontro?
         - Hum, Yoh?
         - O quê? – Yoh respondeu sem tirar os olhos inquietos da cidade abaixo dela.
         Era só descer a estrada ao lado daquele barranco que então eles estariam em Arkadi.
         Várias casas de alvenaria instaladas à esmo, sem um padrão definido, ao redor do que deveria ser uma praça, não dava para ver naquela escuridão, muito menos com toda aquela chuva.
         Yoh sentia frio. Suas tremiam, mas então ela não tinha certeza se isso era frio.
         Talvez fosse apenas uma reação dos seus sentimentos.
         Um castelo pairava ao longe, no que poderia ser descrito como final da cidade. Além do castelo, era um grande oceano com águas profundas e escuras.
         Grandes muros de pedra cercavam o castelo.
         Era uma estrutura meio gótica, sombria, porém encantadora ao seu modo. Não lhe dava arrepios. Yoh sentia-se... segura. Como se aquele fosse seu lugar. Como se Arkadi fosse seu lugar.
         Ela sentiu um arrepio na sua espinha.
         Não.
         Aquele não era seu lugar. Yofer, aquela era sua cidade. Onde estava sua pequena irmã que chorara tanto a sua partida, onde estava seu irmão mais velhos, Odrik, que não chorara, mas sentira a dor ao seu modo.
         Seus pais não choraram.
         Eles sorriram.
         Foi isso que deixou Yohanna com raiva.
         Porque eles sorriram quando sua filha estava indo embora, deixando sua família e aqueles que ela amava sem nem sequer saber por quê.
         - Yoh, você me ouviu? – Dem pegou-a pelos ombros, virando-a para ele.
         Yohanna piscou algumas vezes, o rancor estava presente no seu coração assim como os seus batimentos cardíacos indicavam sua vitalidade.
         Ela sentia tanta raiva dos seus pais agora.
         Ela sentia raiva dela mesma por se sentir segura em Arkadi.
         Yohanna não queria sentir-se segura ali.
         Não.
         Ela queria apenas odiar aquele lugar.
         - Desculpe – ela disse tentando apagar o tom nervoso na sua voz. Aquela raiva não era dirigida à Dem. Ele fora gentil com ela na medida do possível (ninguém arrancou a cabeça de ninguém), então ela só queria dizer obrigado e ir embora.
         - Certo, tudo bem – ele sorriu e largou-a, dando um passo para trás.
         - O que você estava dizendo? – Yoh incitou.
         - Perguntando se você sabe onde Londrina mora.
         - Hum, isso – Yohanna lutava para manter sua mente focada. – Não, não sei.
         - Certo, quer que eu te leve? – Dem perguntou. – Mas tudo bem se não quiser. É fácil achar a casa dela, todos sabem onde ela mora. Não seria difícil você encontrar outra pessoa pra te ajudar nisso.
         - Tudo bem – Yohanna suspirou e sorriu contra sua vontade. – Não quero ter de passar pela coisa da adaga mais uma vez.
         Dem sorriu com uma pitada de malicia nos olhos vermelhos.
         - Sim, você é tremendamente assustadora com aquela adaga nas mãos.
         Rolei os olhos e novamente contrariada, Yohanna sorriu.
         Quer dizer, não era culpa dela. Era engraçado, de fato.
         Sem dizer mais nada, os dois começaram a descer a rua ao lado. A chuva era ótima, sim, Yohanna sabia que era importante devido ao seu planeta tão seco, mas francamente, isso não precisava deixá-la molhada dos pés a cabeça, como ela estava agora.
         - Hum, Dem? – ela estava tão cansada.
         - O que foi? – respondeu distraído.
         - Porque você estava lá atrás, naquela floresta perigosa sozinho?
         Ele sorriu um pouco quando Yohanna usou seus termos anteriores, mas então o sorriso desvaneceu.
         Ok, aquilo fora estranho. Ele era tão extrovertido e sorridente. Yohanna pode perceber isso sobre a personalidade de Dem na última hora. Mas aquela sombra no seu rosto, aquela expressão tão... dolorida e rancorosa, não era uma coisa que combinasse com o rosto bonito e alegre dele.
         Não, havia alguma coisa por trás daqueles olhos escarlates que ele não havia mencionado e que ela podia ver agora.
         Mas aquilo importava realmente?
         Não.
Não de verdade.
- Caminhando – respondeu finalmente. – Para pensar.
- Eu costumava fazer isso. Em Yofer – Yohanna disse sonhadora, mergulhando em suas recordações mais uma vez.
Ela precisava dormir. Logo.
- Yoh – Dem disse cautelosamente. – Posso lhe pedir uma coisa?
- Claro – respondeu ela sem nem sequer se importar de verdade.
Cansaço era só o que ela conseguia sentir. Duas semanas. Duas semanas inteiras andando. Ela se lembraria como dormir em uma cama?
Oh, ela iria. Ela iria sim. Ela podia sentir o lençol macio e suave sob seu corpo...
- Não conte a ninguém que eu estive com você – Dem disse sem rodeios. – Não conte nada sobre mim, na verdade. Será melhor para você nem mencionar que você me conhece.
Agora o cansaço não era mais prioridade.
Yohanna encarou o rosto de perfil de Dem.
- Por quê? – perguntou ela.
Curiosidade era uma coisa surpreendentemente tentadora.
- Porque sim. Você logo irá saber, pra ser sincero.
Ela ergueu uma sobrancelha.
Definitivamente o cansaço não era mais uma prioridade.
- Como assim? Saber o quê? – indagou.
Dem murmurou o que Yohanna achou ser um palavrão e então encontrou os olhos dela.
Aquele vermelho – aquele vermelho que de inicio ela temera – estava tão vulnerável naquele instante que ela vacilou por um segundo.
Entretanto, eram apenas os olhos que demonstravam tal vulnerabilidade. Sua expressão era dura e sua voz ainda mais.
Mas os olhos... Yohanna podia ver o que ele sentia só pelo brilho tão triste neles.
- Provavelmente você irá saber pela manhã. Você nem vai querer falar comigo outra vez quando souber disso.
- Acho que sou madura o suficiente para responder por mim – Yohanna respondeu um pouco contrariada.
Ela nunca acreditou em boatos, mesmo em Yofer que era uma cidade tão pequena que boatos eram a distração mais divertida que as senhoras de mechas brancas em seus cabelos escuros ou claros praticavam.
Yohanna sabia muito bem discernir fatos de boatos. Ela também tinha idade o suficiente para escolher no que acreditar.
Dem abriu um pequeno sorriso torto. Como o primeiro sorriso que ela o viu abrir.
- Resignada, também – ele disse. – Teimosa e resignada, mais alguma coisa? Ah, claro, determinada para vir de Yofer até aqui sozinha.
         Ela permaneceu em silêncio enquanto ele falou. O que ela diria? Ela não tinha nada a dizer.
         Ela apenas queria saber sobre as coisas. Ela queria saber sobre sua vida. Queria saber que boato era esse do qual Dem tanto falava. Queria saber quem diabos era Londrina e porque ela quem cuidaria de Yohanna.
         Quer dizer, se cuidaria.
         E isso era um grande se.
         Deméter sorriu e rolou os olhos.
         - Você nem está me ouvindo – disse, mas não estava se queixando. Yoh corou um pouco. Ela não estivera ouvindo mesmo. Estava ocupada demais tendo pena de si mesma. – Apenas não diga sobre mim. Não toque no meu nome. Vai ser melhor para você.
         Sem mais nada para dizer ao estranho Dem, Yoh apenas concordou com a cabeça, abalada demais com o que lhe esperava mais a frente.
         Ela esperava não ter um grande susto. Na verdade, ela esperava que Londrina deixasse-a dormir numa cama quente e confortável. Ela esperava que tivesse roupas secas, tendo em vista que as que estavam em sua mochila estavam completamente encharcadas aquela altura.
         Yohanna estava começando a tremer. Ela estava com tanto frio.
         Os pés dela faziam um barulho engraçado quando pisavam na lama, assim como os de Dem. As botas de ambos estavam cheias de água. Yoh sentia as poças sob seus pés. Ela teria bolhas.
Isso era perfeito, de um modo irônico, obviamente.
Arkadi era uma cidade grande, agora que ela olhava de perto. Sem comparação com Yofer. Yofer era um vilarejo, lugar onde os retirados moravam. Quem não queria participar da monarquia e dos assuntos da realeza, simplesmente se recolhia em cidades tão afastadas que as conseqüências e as ordens não chegavam tão longe.
Os pais dela não gostavam muito de seguir regras, por isso foram para Yofer.
Yoh nunca viu problemas, mas também nunca gostou muito da idéia de pessoas ditando o que você tinha de fazer.
Parecia pouco justo.
Mas, se não fossem os reis, príncipes, duques e marqueses, quem manteria a ordem e cortesia dentre as pessoas? Se não existisse a realeza, Yoh apostaria tudo que lhe restara – que não era nada, na verdade – que haveria gente se matando para conseguir o poder.
Tolos, era só o que ela pensava deles.
O castelo se agigantava perante aquela cidade, ao longe, mas imponente. Seus grandes muros deixavam claro que lá só entraria convidados.
Não que Yoh quisesse pisar lá.
Nunca, na verdade. Ela nem sequer pensou nisso. O que teria lá? Um monte de pessoas mesquinhas que adoram enfeitar as paredes com ouro e sentar em tronos de bronze com tiaras de prata sobre as cabeças?
É, Yohanna não tinha tais ambições fúteis e tolas. Ela apenas queria viver à sombra, se possível. Ela não queria atenção em demasia. Ela preferia não ser notada.
Não que ela achasse que alguém olharia para ela. Exceto Dem. Mas então eles estavam os dois numa floresta sozinhos. Se ele não olhasse para ela, olharia para o coelho. E Yoh achava que era um pouco mais atraente que um coelho.
Mas o que então ela sabia sobre isso?
Absolutamente nada.
- A casa de Londrina é a mais perto dos muros do castelo – Dem quebrou o devaneio de Yoh, tirando-a de uma sufocante apreensão.
Ela olhou para ele em meio aos pingos de chuva que deixavam tudo tão molhado e difícil de ver.
- Hum – Yoh balbuciou. – Acho que posso encontrar sozinha.
Dem sorriu.
- Não, você não pode – disse. – Há tantas casas aqui, Yoh. Praticamente o triplo do triplo do que você via em Yofer.
Yoh olhou fixamente para as monstruosas construções a sua frente. Tudo tão mais rico, tão diferente do pequeno e modesto vilarejo onde todos dividiam o leite e os pães.
Ali, parecia ser cada um por si. Nada de cafés da manhã comunitários nos domingos. Nada de divisão de leite e pão.
Ela engoliu em seco.
- Eu te acompanho até lá. Não é tão longe quanto parece – disse Dem.
Yoh só foi capaz de assentir, sem confiar na sua voz.
Seu peito se contorceu de saudade de sua família. Yofer, sua pequena e amada terra. Seu lar.
- Yohanna!
Yoh ergueu a cabeça completamente confusa com o chamado. Não havia ninguém na rua àquela hora da noite, as luzes das casas estavam a maioria acesas, mas nenhuma pessoa na rua.
Mas então ela conhecia a voz.
Dem a encarou meio confuso, depois estreitou seus olhos para a noite.
- Parece que alguém conhece você – ele disse.
Yoh olhou para os lados, seu coração transbordando de esperança. Ela não estava tão só então.
O homem com cabelos loiros e mechas azuis saiu da escuridão carregando um lampião aceso numa das mãos. O sorriso convidativo, de boas vindas. O homem lindo que a esperava.
Ela sorriu amplamente, seus lábios desacostumados aquela ação parecia doer com o ato.
- Odrik! – ela exclamou e foi de encontro com o homem de vinte anos, olhos tão azuis quanto as mechas em seus cabelos.
Seu irmão, seu irmão Odrik estava ali. Ela nem conseguia acreditar.
Yoh jogou seus braços ao redor da cintura do homem – era só onde ela alcançava com seu diminuto tamanho. Seu irmão não era mais alto que Dem, mas era mais alto que ela. 1,85m, bem distribuídos. Suas mãos grandes pousaram em suas costas e lhe acariciaram.
Odrik estreitou seus olhos para enxergar alguns metros a sua frente.
- Quem é aquele? – perguntou.
- Hum, ele me ajudou a encontrar o caminho, na verdade – Yoh respondeu e se virou. – Dem!
Deméter, que já estava indo embora, parou abruptamente e virou para encará-la. Ela não podia dizer ao certo sua expressão com toda aquela chuva e escuridão.
- Yohanna – disse Dem, sua voz calculada, seus olhos escarlate indo de Odrik para ela.
- Obrigada – disse Yoh ainda com seu sorriso enorme nos lábios. – Esse é meu irmão, Odrik.
A expressão dele não se alterou. Ele olhou para Odrik, fez um aceno de cabeça e então continuou andando, fazendo seu caminho para qual seja sua casa.
Yohanna olhou para seu irmão mais velho.
- Odrik – ela disse com alivio, toda a tensão daquelas duas semanas, todo o medo de ficar sozinha exalando. – Tão bom ver você.
Ele sorriu.
- Eu sei – provocou. – Difícil ficar longe de mim.
Yoh rolou os olhos. Não queria começar a discussão de sempre. Seu irmão era tão metido. Eles sempre começavam uma discussão toda vez que uma brincadeira dessa vinha à tona.
Mas Yoh não queria brigar agora. Não quando estava tão feliz em vê-lo.
- Vamos, esta chovendo muito – Odrik puxou-a para debaixo de seu grande casaco de pele de animal. Era grande e marrom, fofo e quente. Ela agradeceu internamente pelo calor e pela secura do seu interior. – Tudo bem com você?
- Sim – Yohanna suspirou e sorriu como uma boba novamente. – Agora está tudo bem.

2, Promessa

2
Promessa

D
eméter – para desolação total de Yohanna – desatou a rir.
         Seus ombros sacudiam enquanto ele fazia isso e avançava para o lado de Yohanna. Ele balançou a cabeça em descrença.
         - Você é teimosa – apontou ele.
         Yohanna rosnou e rolou os olhos em resposta àquilo.
         - Você é teimosa para uma pessoa do seu tamanho – continuou ele ignorando a reação de Yohanna.
         Aquilo a encheu de ultraje. Ela era pequena sim, mas perto dele que era grande demais. Ela tinha 1,68m de altura, não era baixo. Era, obviamente, perto de uma pessoa de 1,94m, como Deméter.
         - Se você esta tentando me ofender--
         - Não – Deméter olhou pensativo para Yohanna, ele não sorria e seus olhos escarlates refletiam sua expressão pensativa. – Não, eu gosto disso.
         Yohanna rolou os olhos e bufou novamente. Claro que ele estava tentando ofendê-la. Como ela pode ter medo dele? Ele era só... irritante.
         Uma pessoa muito irritante, na verdade.
         - É só me dizer que caminho tomar – Yohanna resmungou. – Só dizer onde fica Arkadi, se você souber.
         Ele olhou para ela por mais alguns segundos antes de apontar a estrada da direita.
         - Obrigada – Yohanna disse e começou a andar naquela direção.
         A mesma direção que Deméter começou a ir também.
         - O que você pensa que esta fazendo? – ela virou-se e disse à ele com irritação fluindo ao seu redor.
         Ela não queria ninguém ali com ela. Yohanna já estava suficientemente arrasada sozinha, mais alguém só faria as coisas piores.
         Pelo menos era isso em que ela acreditava.
         - Eu? – Deméter disse em falsa inocência. – Andando até Arkadi, como você.
         Yohanna ergueu uma sobrancelha loira, coisa que ela demorou muito para aprender a fazer.
         - Não, você não vai – disse ela.
         Deméter pareceu achar aquilo irrelevante.
         - Eu moro lá – disse ele voltando a andar, passando por ela, esbarrando levemente em seu ombro. Não foi agressivo, apenas irritante, como metade das coisas que ele fazia, Yohanna notou. – Pode ficar aí e esperar amanhecer se quiser. Não está longe, pra dizer a verdade, você chegaria em uma hora ou duas, se for lenta. Mas estou indo. Bom conhecer você, Yohanna.
         Respirando fundo algumas vezes, Yohanna resmungou algum palavrão qualquer, rolou os olhos e se colocou para andar.
         Uma ou duas horas? Ela não era lenta. Ela chegaria em uma hora, no máximo. Yohanna queria dormir num colchão esta noite, não em cima de folhas ou qualquer coisa remotamente macia que ela pudesse achar.
         Para piorar um pouco a situação, a noite subitamente ficou fresca e gotas começaram a cair.
         Chuva.
         Há quanto tempo não chovia? O verão inteiro. Oito meses sem nenhuma gota de água caída do céu.
         Aurora era tão seca e quente que a chuva era uma coisa ótima. A chuva fazia Yohanna sentir saudade de casa – a casa que ela forçadamente deixara há duas semanas.
         - Tudo bem – disse Yohanna meio que para si mesma ou para Deméter, ela não sabia ao certo. – Eu vou.
         Ela pode ouvir a risada de Deméter a alguns metros dela. Yohanna correu um pouco para alcançá-lo. Se ela ia andar com ele até Arkadi, melhor que tivesse um garoto com todo aquele tamanho suficientemente perto dela caso algo com dentes enormes aparecesse.
         Quer dizer, olhe pro tamanho dele. A coisa com dentes grandes provavelmente escolheria devorá-lo primeiro. Ele tinha muito mais carne que ela.
         Yohanna sorriu um pouco, cheia de malicia, perante aquele pensamento reconfortante.
         - O que foi? – Deméter perguntou confuso, o que tirou Yohanna de seus pensamentos sobre as possíveis bestas devoradoras de Deméter.
         - Hum – ela balbuciou e sorriu um pouco mais. – Nada.
         A chuva continuava caindo e Yohanna já estava encharcada. Seu cabelo grudava em sua testa, uma mecha violeta em seus olhos, obstruindo a sua visão. Ela tirou o cabelo do seu rosto.
         Anabette lhe disse para chegar até Arkadi, para falar com Londrina. Mas quem diabos era Londrina?
- De onde você vem, Yohanna? – Deméter perguntou. – Você não é daqui.
         - Yofer – ela respondeu.
         Ele assobiou por sob sua respiração.
         - Isso é bem longe.
         - Eu sei – Yohanna balançou a cabeça frustrada e cansada.
         Toda a exaustão daquela viagem que já durava duas semanas estava se fazendo presente agora. Era tão desgastante.
         Ela queria voltar. Ela queria a segurança dos portões de Yofer, a segurança da sua casa quente, com sua família.
         Ela queria saber por que ela tinha que ir embora.
         - Por que vir para Arkadi? – Deméter perguntou. – Por que não Gatrine ou Hujeih? São cidades maiores e muito mais perto de Yofer.
         Yohanna balançou sua cabeça em negação.
         - Não foi uma escolha minha.
         - Isso soa injusto.
         Yohanna virou seu rosto para encarar Deméter. Era injusto, claro que era. Mas ela não esperava que ele dissesse isso.
         Deméter não olhava para ela, mas Yohanna podia ver seu perfil. Ele olhava para frente, um ar pensativo pairando em todo seu redor, seu nariz era levemente torto, indicações de que já fora quebrado anteriormente.
         Isso atiçou sua curiosidade.
         Ela queria saber como ele quebrara o nariz. Ela queria saber quem fora para poder apertar-lhe a mão.
         - De novo, isso não foi minha escolha – Yohanna suspirou.
         Ela queria realmente saber por que sua vida não se baseava em suas próprias escolhas. Ela queria saber que promessa era essa que seus pais fizeram que era tão importante ao ponto de Yohanna ter de deixá-los para sempre.
         Porque eles não quebrariam sua promessa. Isso não era uma opção para eles. Nunca foi.
         Uma pontada de raiva e desamparo, um pouco de ressentimento e dor, pinicou seu coração.
         - Eles preferiram perder a filha a quebrar a promessa – Yohanna murmurou para si mesma.
         Ela não contava que Deméter ouvisse sua reclamação que deveria ter sido muda.
         - O que? Quem são eles? – indagou.
         - Nada – Yohanna apressou-se.
         Que sentido tinha me mais alguém ficar sabendo sobre a promessa dos Bourbon? Yofer inteira sabia disso. Um calor tomou conta de Yohanna quando ela lembrou-se dos olhares que as pessoas lhes lançavam em Yofer.
         Raiva. Dor. Pena. Uma vez ela até recebera um de inveja.
         Mas por quê? Por que tanto rancor em relação a ela se nem Yohanna sabia o que estava acontecendo com ela? Por que ela tinha de deixar Yofer, a cidadezinha minúscula que ela tanto adorava?
         foram perguntas que ninguém respondeu à ela. Perguntas que ela tinha em seu coração.
         “Nós prometemos” seu pai lhe suplicara. “Nós prometemos que não contaríamos”.
         Ela tinha vontade de gritar para a noite, para a chuva. Ela queria respostas. Ela queria o motivo, a razão pela qual trocaram sua vida.
         O que afinal, valia isso? Seus pais trocando a vida de sua própria filha. À troco de quê?
         - Você conhecesse alguém chamada Londrina? – Yohanna quebrou um silêncio que já durava alguns minutos.
         Deméter pareceu um pouco surpreso à menção do nome.
         - É, conheço sim – ele estreitou seus olhos, agora olhando para ela. Yohanna olhava para a frente, mas sentia o olhar intenso e rubro em seu rosto. – Por quê?
         Sinceramente? Ela não sabia direito.
         - Hum... – Yohanna lutou em sua mente para encontrar alguma resposta. – Na verdade, eu não sei.
         Ela olhou para ele, encontrando seu olhar vermelho.
         Deméter ergueu uma sobrancelha.
         - Como assim você não sabe? – sua voz era desconfiada.
         - Algo complicado – murmurou baixinho, voltando a encarar a estrada de terra à sua frente.
         Ao longe, através da chuva que embaçava sua visão, ela foi capaz de avistar algumas luzes, pequenas tochas ao longe.
         Arkadi.
         - Temos mais algum tempo de caminhada – ele apontou.
         Yohanna suspirou.
         - Minha vida é complicada, Deméter – Yohanna suspirou mais uma vez.
         - Dem – disse ele.
         - O quê? – Yohanna questionou, olhando para ele.
         Deméter piscou e olhou para frente novamente.
         - Prefiro Dem. É meu apelido.
         - Oh – Yohanna sorriu. – Certo, Dem.
         Após alguns minutos sem dizer nada, Deméter – ou melhor, Dem, como o garoto antes sem nome refere ser chamado – irrompeu com a cálida noite, onde o único som que se ouvia eram o dos pingos da chuva batendo contra as folhas e o chão.
         - Como alguém de Yofer pode ter uma vida complicada? – ele estava se divertindo com isso.
         Certo. Dem parecia se divertir com qualquer coisa. O que era irônico porque Yohanna não gostava de ver sua vida sendo ridicularizada. Principalmente Yofer.
         Está certo que Yofer não era exatamente uma cidade movimentada, mas era uma vida pacata, retirada, maravilhosa em todos os sentidos.
         Mas então Yohanna estava cansada demais e decidiu que não valia à pena entrar numa discussão sobre o assunto.
         - Yofer é ótima – Yohanna disse.
         - Não disse que não era – Dem defendeu-se. – Mas é que é uma cidade tão afastada que eu fiquei me perguntando em como uma pessoa poderia ter uma vida conflitante lá. Por que uma pessoa gostaria de deixar Yofer, é o que estou querendo dizer.
         Yohanna engoliu em seco.
         Ela não queria ter saído de Yofer. Ela crescera lá. Vivera toda sua vida em uma cidade da qual gostava, com pessoas que ela gostava.
         E então veio a noticia há um mês.
         “Você terá de ir embora, Yohanna” Anabette chorara e abraçara a filha que a afastou com um movimento brusco.
         “Por quê?” Yohanna perguntara com um sentimento de traição crescendo em seu peito.
         Eles a estavam mandando embora.
         Sua irmã pequena, de cindo anos, Fanniz, fez um apequena careta e começou a chorar também.
         “Por que Yoh tem que ir, mamãe? Por que ela não pode ficar com a gente?” a pequena Fanniz perguntara em meio às lágrimas.
         A expressão da mãe se contorceu em dor ao ver a caçula chorando e Yohanna cheia de rancor a sua frente. Anabette começara a soluçar também.
         “Oh, querida, entenda. Foi uma promessa feita há muitos anos. Você precisa ir embora, querida, cumprir seu destino”.
         - Yohanna? – Dem tirou-a do seu devaneio.
         Ela olhou meio atordoada pela sua lembrança. Pela expressão de Dem, ele parecia estar a um tempo chamando o nome dela.
         - Yoh – Yohanna corrigiu-o com uma pontada no coração, lembrando-se de sua pequena irmã Fanniz.
         - O quê? – Dem perguntou confuso.
         - Yoh – repetiu ela. – Me chame de Yoh.

1, Estranho na Floresta

1
Estranho na Floresta

T
udo era tão novo e Yohanna estava surpresa de ter vivido quinze anos ali e nunca ter percebido o quão vasto o mundo era.
         Ela tinha saído do âmago e da segurança da sua pequena cidade natal. Ela tinha deixado seus pais. Por causa de suas promessas – promessas de seus pais, não dela.
         Yohanna sentia que devia ter alguma consideração para com eles. Mas eles nunca lhe disseram o que ela teria de fazer, o porquê prometeram-na ou qualquer outro tipo de explicação.
         Eles apenas disseram: “Yohanna, chegou a hora”.
         E ela teve que ir.
         Deixar sua vida, seus amigos. Sua família.
         Anabette e Octus, seus pais, apenas lhe deram o endereço, as coordenadas de onde ir.
         “Encontre Londrina, Yohanna, ela cuidará de você em Arkadi”.
         Era fácil para ela dizer, já que não fora ela a prometida e não seria ela quem teria aquele destino.
         Seria Yohanna, não sua mãe.
         Agora estava ela lá, parada entre uma divisão na estrada de terra batida, no meio da floresta tropical, úmida que a fazia sentir tanto calor. Ela tinha dois caminhos – sem a menor idéia de qual dos dois pegar.
         - Droga – Yohanna suspirou e baixou seus olhos violeta para o pedaço amassado e amarelado de papel em uma das suas mãos com unhas pintadas de preto.
         Não havia nada que indicasse essa encruzilhada. Nenhum rabisco parecido com um Y, nada que sequer indicasse que ela teria de escolher uma estrada.
         Maravilha.
         Só faltava ela estar perdida.
         - Droga – repetiu num tom mais alto e bufou com raiva.
         Yohanna jogou sua mochila cheia e pesada sobre as raízes sobressalentes de uma árvore com folhas amarelas vibrantes e sentou-se lá também.
         Estava cansada. Quanto ela caminhara desde a última vez em que parou para descansar? Yohanna sequer lembrava. Ela saiu de manhã bem cedo, ao nascer do sol, e caminhara desde então sem nenhuma pausa.
         Agora, fim de tarde, ela pensara que tinha o direito de descansar um pouco.
         Apenas alguns minutos, só para retomar o fôlego.
         Se ela ainda estivesse em Yofer, com seus pais, ela não estaria cansada agora. Ela estaria pronta para um banho e para o jantar em família, com sua irmã e irmão, prontos para fazer qualquer coisa legal depois da noite cair.
         Uma vida comum que Yohanna sempre achou boa o suficiente para não ficar ansiando deixar.
         Ela queria estar lá, em Yofer. Não aqui, no meio do nada, sem saber pra onde ir.
         Ela sequer sabia se estava perdida. Ela suspeitava que sim, já que no seu mapa improvisado – feito por sua mãe, Anabette – não havia um Y.
         Era tudo o que ela precisava, estar perdida.
         Ela levantou seus olhos para o céu, observando o céu azul límpido transformar-se e laranja enquanto o sol se punha.
         Nuvens amantes brancas, agora rosadas, flutuavam preguiçosamente sobre a copa das árvores de diferentes cores, diferentes tonalidades.
         Seu mundo, Aurora, era magnífico. Diferente, misterioso, porém lindo.
         Yohanna amava seu mundo como amava sua família, como amava a si mesma.
         Distraída, um leve e sereno sorriso brotou em seus lábios, enquanto suas pálpebras cediam à exaustão de seu corpo pequeno. O farfalhar das folhas das árvores, o perfume estonteante das flores mais belas do universo invadiram seu olfato.
         Um barulho de galhos quebrando chamou sua atenção, despertando-a do seu devaneio, fazendo-a abrir seus olhos assustada e temerosa.
         Yohanna não sabia muito sobre Aurora, não vivera além dos portões de Yofer, mas um aviso de seu a tinha deixado com os cabelos da nuca arrepiados: “Cuidado lá fora, Yohanna. É perigoso”.
         Aquilo fez Yohanna pensar que não sabia sobre nada além de Yofer e que estava prestes a começar uma jornada completamente nova e surpreendente para ela.
         Ela ficou com medo, na verdade.
         Não ignorando o aviso de seu pai, Yohanna colocou-se de pé num pulo, esquecendo seu medo e sua insegurança, olhando ao redor com atenção e precaução, apertando a adaga de prata que seu pai lhe entregara antes dela partir.
         Ela não falou. Ela não pediu o nome de ninguém. Ela apenas olhou e procurou por algo fora do comum.
         Seus olhos estreitados quase como fendas lhe permitiram um deslumbre de algo – ou seria alguém? – se escondendo atrás de um tronco de árvore.
         Ah. Que ótimo.
         - Você – agora ela falou, sua voz saindo um pouco rouca pela falta de uso. – Saia daí agora.
         Foi surpreendente para Yohanna o tom autoritário que sua voz adotou sem seu próprio consentimento.
         Nada em resposta.
         Yohanna começou a pensar se não tinha imagino aquele barulho e aquele movimento, se não era apenas impressão sua, quando então a figura mostrou-se.
         Estava meio escuro, o sol já estava quase completamente sumido, então ela não conseguiu obter uma definição exata de quem era, exceto se ela estreitasse seus olhos, e foi o que Yohanna fez.
         Era um homem. Não, não um homem. Um garoto. Talvez dezesseis anos, talvez dezessete, ele era alto, bem mais alto que ela, e tinha com certeza mais, músculos que Yohanna, então ficava difícil dizer sua idade certa.
         Seu cabelo era castanho com mechas vermelhas – todos tinham mechas coloridas. Os fios eram bagunçados, curtos, até um pouco acima de suas orelhas. Algumas mechas eram mais compridas do que as outras, caindo sobre sua testa até seus olhos. Seus olhos eram vermelhos também, assim como as mechas em seu cabelo.
         O rosto era angular, feições duras e fortes, marcantes, como se ele já tivesse vivido coisas demais. Aquilo o deixava mais maduro, mais velho.
         Ele era bonito, porém isso não amenizava o fato dele ser um estranho.
         - Quem é você? – perguntou Yohanna, sua voz esbanjando resignação.
         Ela estava um pouco aliviada de não ser nenhum animal com garras afiadas que pudesse devorá-la em duas dentadas.
         Então seu antigo pânico retornou quando ela se deu conta de que ele poderia fazer a mesma coisa, só que em vez de dentadas ele lhe daria facadas.
         Yohanna engoliu em seco enquanto esperava o estranho respondê-la.
         O garoto ergueu suas mãos para o ar, em sinal de rendição, coisa que aliviou o pavor não expressado de Yohanna apenas um pouco. Aquilo não significa que ele não iria fazer nada. Podia ser um blefe.
         - Calma lá, garota – ele disse, com um dos cantos da boca com lábios rosados e cheios levantando-se em um pequeno sorriso torto.
         Sorriso que revelava dentes brancos e perfeitos, sorriso brilhante e bonito.
         Características que não diminuíram sua periculosidade.
         “Não se engane com a beleza” sua mãe lhe disse. “Eles podem ser bonitos”.
         “Quem mãe?” Yohanna sussurrara para a mãe, com um pouco de medo em seu coração.
         “Os monstros”.
         - Quem. É. Você? – Yohanna enunciou cada palavra com firmeza, sem espaços para qualquer pergunta ou brecha para amizade.
         O garoto pareceu achar aquilo levemente engraçado, já que seu sorriso aumentou. Porém, Yohanna julgou não ser tão hilariante assim, já que, mesmo com dois metros lhes separando, ela podia ver que seus olhos rubros ficaram tristes. Ou, até mesmo, raivosos.
         - Não vou te machucar – ele garantiu sem abaixar as mãos, avançando alguns passos para perto dela.
         Ele usava uma calça de malha preta com uma camiseta branca com um colete também de malha preta por cima, desfiada em suas mangas obviamente cortadas. Seus pés estavam calçados com botas de cano médio, grossas e grandes, que fizeram um estardalhaço ao pisar nas folhas secas sob seus pés.
         Ela pode vê-lo mais claramente quando ele ficou sob a luz do luar em meio a todas aquelas árvores.
         Quando o garoto desconhecido ameaçou dar mais um passo em sua direção, Yohanna ergueu um pouco mais sua mão que segurava a adaga.
         Ela tentou esconder o fato de que seu corpo inteiro tencionara-se com medo, fazendo parecer que havia sido de raiva. Ela suava um pouco sob a blusa laranja coberta com um colete preto que ia até metade de seu abdômen. Suas pernas estavam cobertas com uma calça de malha preta e ela usava botas de cano longo na mesma cor.
         Ela sentia-se mais confortável e segura vestida daquele jeito.
         Mas isso não foi suficiente naquela noite.
         - Ei, calma, não vou te fazer mal, já lhe disse – o garoto disse e parou de tentar alcançá-la.
         - Então me diga seu nome – Yohanna falou.
         - Deméter Hermmom – disse ele com as mãos fixas no alto de sua cabeça. – E o seu?
         Era seguro dizer seu nome? Claro que era. Yohanna repreendeu-se mentalmente por ser tão profundamente paranóica.
         - Yohanna Bourbon – respondeu.
         O garoto sem nome – Deméter – sorriu com todos os dentes.
         Aquele sorriso acendeu seu rosto que, antes, Yohanna julgara cansado.
         - E o que você faz aqui, pequena Yohanna Bourbon?
         - Isso não é da sua conta – Yohanna retrucou. Ele ainda era um estranho, mesmo que ela soubesse seu nome.
         E se ele fosse um dos monstros dos quais sua mãe lhe alertara? E se seu nome não fosse Deméter?
         - Eu te disse que não a machucaria, Yohanna. Pode abaixar sua adaga.
         - Claro, e então você me ataca – ela rolou seus olhos violeta. – Bem típico.
         Ele riu.
         - Certo – Deméter disse. – Você terá de confiar em mim nessa.
         Yohanna olhou fixamente para Deméter. Ele era grande – alto e musculoso – e aquilo a deixava um pouco... amedrontada, talvez. Não, não era essa a palavra. O tamanho dele não a intimidava, apenas deixava-a... desconfiada. Era isso.
         Mas então ela olhou seus olhos e o sorriso em seus lábios. Os olhos dele fizeram brotar um arrepio em seus braços. Escarlates. Tão diferente. Ela nunca vira olhos escarlates em ninguém mais, assim como nunca vira nenhum par de olhos violeta, mas então ela nunca viajara para fora de Yofer.
         Yohanna tomou uma decisão.
         - Tudo bem – ela disse. – Mas você tem dar sua palavra de que não irá pular em cima de mim – ela pausou um instante e acrescentou: – E nenhum dos seus amigos, caso tiver algum escondido atrás de alguma árvore por aqui.
         Deméter riu a menção da condição que Yohanna empunhara.
         - Amigos – ele disse a palavra com um humor negro. – Certo. Tudo bem, eu lhe dou a minha palavra de que nada de ruim vai acontecer a você enquanto estiver comigo.
         Yohanna vacilou.
         Quando alguém dava sua palavra à outro alguém, era algo importante. Realmente importante. Não havia como fugir disso. Não havia como quebrar sem ferir a si mesmo no processo.
         Se a promessa fosse quebrada, ambos sofreriam. Sofreriam uma dor física e mental.
         As conseqüências que tornava arrepiante e incogitável a opção de quebrar uma promessa.
         Lentamente, Yohanna abaixou sua mão e guardou a adaga ao cinto. Deméter imitou-a e abaixou suas mãos também.
         - Tudo bem, agora que estamos sem objetos pontiagudos nas mãos, você podia me dizer por que esta no meio de uma floresta perigosa – ele olhou significativamente para Yohanna. – E sozinha.
         - Eu podia perguntar o mesmo de você – Yohanna retrucou.
         Ele reprimiu um sorriso e aproximou-se dela.
         - Certo. Eu quero ajudar você. Mas para isso acontecer, você deve me dizer no que você precisa ser ajudada.
         - O que me faz perguntar por que você quer me ajudar.
         Deméter balançou a cabeça.
         - Yohanna, eu lhe dei minha palavra. Você sabe o que isso significa, não é?
         Yohanna assentiu com a cabeça.
         - Então porque tanta desconfiança? – ele perguntou claramente confuso e impaciente.
         Yohanna sentiu-se um pouco ofendida com a pergunta idiota.
         - Bem, porque eu não conheço você, talvez? – irritação resplandeceu em seu tom. – Por que nunca vi você em toda minha vida e porque também nunca vi ninguém com... olhos vermelhos?
         Aquilo pareceu ter atingido um nervo, tal a maneira como os ombros de Deméter tencionaram e em como suas sobrancelhas escuras uniram-se e seus olhos estreitaram-se, faiscando um pouco.
         - Eu também nunca vi ninguém com olhos roxos – ele soou nervoso, mais irritado do que a própria Yohanna se sentia.
         Ela bufou.
         - É violeta – ela corrigiu com petulância, erguendo seu pequeno queixo.
         Ele rolou os olhos.
         - Tanto faz – disse. – Eu devia me sentir da mesma forma e relação à você.
         Certo, ele tinha um ponto. Mas ele tinha que admitir que violeta não era assustador e nem tão medonho quanto vermelho.
         Mas Yohanna não ia falar isso, claro.
         - Estou perdida – admitiu, porém, com o queixo erguido, sem parecer que foi realmente uma desistência.
         Bom, não funcionou tão bem quanto ela planejou.
         - Perdida? – ele sorriu.
         - É! – ela exclamou frustrada e deu-lhe as costas, jogando sua mochila por cima do ombro e começando a voltar para a estrada.
         Seus planos eram uma saída mortalmente dramática. Foi bem trágico para ela quando esse plano dissolveu perante a divisão na estrada.
         Contando até dez mentalmente, fechando e abrindo os olhos várias vezes, ela virou para Deméter que estava perfeitamente parado onde estivera há cinco segundos, seus braços cruzados no peito e um sorriso presunçoso no rosto.
         - Droga – Yohanna murmurou para si mesma. – Você, hum, por acaso sabe para que lado fica Arkadi?