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sábado, 20 de novembro de 2010

Capítulo 5

5
Protetores de Sangue

Y
ohanna ofegou.
        Ela não conseguia se lembrar de quando foi que alguém lhe esclareceu alguma coisa. Talvez porque isso nunca tivesse acontecido.
        - Você sabe sobre os Adônis? – Londrina perguntou-lhe.
        Adônis? Yohanna nunca tinha ouvido falar sobre eles.
        Yoh negou com a cabeça.
        - Me desculpe – disse ela confusa, sem saber se devia ter se desculpado, mas fazendo-o mesmo assim.
        - Curioso – Londrina balbuciou e estudou Yoh com a testa levemente enrugada. Seus olhos laranja pareciam ver através de Yohanna, algo invisível para a garota ali sentada. – O juramento foi tão profundo que eles nunca lhe puderam falar sobre nada que se relacionasse à promessa.
        Yoh balançou a cabeça.
        - Porque eles prometeram não me contar nada? – ela não queria que sua voz tivesse soado tão exigente, mas então ela estava tão determinada a obter suas respostas que não ligou muito para como soou. – Eu não consigo entender.
        Londrina sorriu ligeiramente.
        - Interessante, isso está em você – ela disse, deixando Yohanna ainda mais confusa. – Isso faz parte de você, mesmo que você não saiba sobre nada.
        - O que está em mim? – Yoh quase implorou.
        Ela não queria ser tão pidona, mas então era sua vida, as respostas da sua existência, por assim dizer.
        Ela precisava saber – e precisava saber rápido.
        - O sangue do Protetor, o desejo de proteger, a determinação e resignação de um Protetor.
        Yohanna franziu o cenho, imersa em confusão.
        Ela achou que teria respostas, não enigmas para desvendar.
        - Eu não estou entendendo – Yohanna disse. – O que é um Protetor?
        Londrina suspirou.
        - Protetores são os centauros. Metade homens, metade cavalos – disse Londrina. – Eles são fortes, mais fortes do que nós podemos ser. O sangue deles é mágico, lhes dá força para proteger quem deve ser protegido.
        Yohanna estreitou seus olhos.
        - Quem deve ser protegido?
        - Nós – Londrina disse simplesmente, dando de ombros. – Dizem que cada um de nós tem seu Adônis, mas então não se tem certeza. Quem tem seu Adônis desde que nasce é a realeza. Eles têm marcas no corpo na cor dos olhos e mechas do seu protegido. Eles também carregam um anel de prata na mão com a marca de fogo. São chamados de anéis de fogo.
        Londrina pausou e ficou olhando para Yoh. Erguendo as sobrancelhas, Yohanna assentiu, indicando que estava acompanhando.
        - Cada Adônis protege um príncipe, um duque ou um marquês. Apesar das histórias, apenas os Adônis, digamos, reais, vêm ao encontro de seu protegido quando o mesmo nasce.
        - Certo – Yoh disse meio atordoada e encantada. – Entendi. E o que isso tem a ver comigo e com a promessa?
        Londrina suspirou cansada, parecendo prestes a revelar algo que esperasse não ser verdade.
        - Eu disse que você tem o sangue do Protetor – Yoh concordou. – Quando você nasceu, Yohanna, você era tão pequena e tão miúda, você estava muito, muito doente. Ninguém sabia o que você tinha. Então seus pais procuraram o Protetor Ancião e lhe pediram para que curasse você. O Protetor Ancião foi um dos primeiros Adônis que houve, eles têm vidas longas, os centauros, e o Protetor Ancião é o único que ainda nos resta da primeira geração.
        “Eles têm esse poder, os Anciãos, de curar. Mas então eles não podem fazer isso para qualquer pessoa. Seus pais estavam desesperados e então prometeram que você nunca saberia disso pela boca de nenhum de seus parentes e que seria treinada, para que quando você tivesse quinze anos partisse para Arkadi, para a cidade real, para se tornar formalmente uma Protetora e ser designada para seu protegido.
        “O Protetor Ancião lhe curou com seu próprio sangue, tirando seu sangue impuro do seu pequeno corpo e colocando o dele próprio no lugar. Assim, você seria forte e teria tudo o que um Protetor deve ter. Com isso, as três Moiras teceram seu destino uma vez mais, já que houve a interferência do supremo protetor. Yohanna, seu destino é único, nunca antes traçado por alguém.”
        O queixo de Yohanna caiu. Ela não sabia o que dizer, o que pensar. Ela era uma Protetora? Ela tinha que proteger alguém? Como ela faria isso? Quer dizer, ela teve treinamentos de luta e equitação, mas então ela nunca soube de verdade porque tinha de treinar tanto.
        Agora ela sabia.
        - Eu sou... uma Protetora? – sussurrou, seus olhos violeta arregalados. – As três Moiras teceram meu destino? Como assim?
        Londrina assentiu suavemente, seus olhos doces e compreensíveis.
        - Não uma Adônis, como os centauros são chamados, mas uma Protetora humana, a primeira Protetora humana – ela hesitou um momento, estudando Yoh. – É por isso que seus olhos são dessa cor. Você é única, assim como a cor deles. A única humana com sangue de um Adônis, o mais poderoso deles.
        “As três Moiras são as filhas de Nix, anciãs que tecem o destino dos mortais. Você foi a única que teve seu destino tecido novamente, a única que elas não cortaram o fio na hora da morte, a única que as Ceres não puderam levar para a terra das sombras.”
        Yohanna ficou espantada com aquilo.
        - Única? – ela não conseguia acreditar. – Não – balançou a cabeça. – Deve ser um engano ou algo assim. Eu sou apenas uma garota de Yofer.
        - Compreendo como você se sente, Yohanna – Londrina sorriu ternamente. – Mas você não é só uma garota de Yofer. Você é uma garota Protetora, uma garota com o sangue do Protetor Ancião correndo em suas veias, pulsando em seu corpo, bombeando em seu coração.
        Yohanna levantou-se subitamente da sua cadeira, confusa demais, sua cabeça latejando de tanta informação.
        Moiras? Ceres? Protetor Ancião? Ela era uma Protetora?
        Ela sentia-se a ponto de explodir.
        - Eu preciso de um tempo – Yoh olhou com olhos arregalados para Londrina. – Por favor.
        - Tudo bem – Londrina levantou-se também. – Pode ir. Mas cuide-se, Yohanna.
        Ela assentiu e retirou-se do escritório com passos largos e pesados. Tentou não fazer nenhum barulho ao sair da casa. Ela fechou a porta da frente atrás de si e caminhou um pouco pela rua residencial calma como era à noite.
        Yoh não conseguiu agüentar muitos passos mais além da entrada da rua. Ela escorou-se no tronco de uma árvore com folhas amarelas e flores rosadas.
        Ofegou e lutou para manter-se lúcida e não sair gritando de frustração.
        Deus, sua vida acabara de dar uma cambalhota.
        Ela fora prometida, prometida para ser uma Protetora, guardar uma vida, proteger uma pessoa que ela nem conhecia. Fora prometida para cumprir a tarefa que apenas centauros eram designados para fazer, os Adônis.
        Tudo tão confuso, tão absurdamente confuso que sua cabeça doía.
        Uma pessoa ou outra passou e olhou de canto de olho para a figura da garota de olhos violeta sentada aos pés da árvore, mas nenhuma que se importasse o suficiente para olhar outra vez.
        Melhor assim.
        Ela queria pensar, pensar e pensar. Não sabia em quê, exatamente, mas ela só sabia que deveria fazer isso.
        O que ela supostamente faria agora? Fugir? Não, Yohanna não era covarde. Yohanna sentia medo, como todo mundo, mas ela jamais fugiria de algo que ela deveria fazer.
        Era seu destino e ela sabia que nunca poderia fugir dele. Ele a encontraria. O destino sempre encontra.
        - Você está bem? – a voz conhecida perguntou assim que se sentou do lado oposto do tronco ao qual Yohanna estava encostada.
        Ela sorriu um pouco com isso, em meio ao mar de tensão em que estava submergida.
        - Odrik – ela suspirou.
        - Eu mesmo – disse ele. – Você está bem?
        - Estou sim – ela respondeu. – Confusa, perdida, mas bem.
        Odrik se fez ver, resolvendo sentar ao lado dela ao invés de praticamente esconder-se no outro lado do tronco.
        - Sinto muito – disse ele, cobrindo o sol e o pedaço de céu azul que ela podia ver com a sua cabeça. – De verdade. Eu não fazia idéia de tudo isso. Quer dizer, eu sabia, mas nunca consegui te contar nada.
        Assentindo com a cabeça, Yohanna suspirou.
        - Eu sei. Foi a promessa de mamãe e papai. Nenhum parente meu podia me contar nada relacionado a ela.
        Odrik falou um palavrão bem feio.
        - Droga de promessa – disse. – Eles te deixaram no escuro durante tanto tempo...
        - Pra salvar minha vida.
        - Sim, eu me lembro – ele suspirou. – Eu tinha cinco anos, mas eu ainda assim lembro. Foi bem... complicado para esquecer.
        Os olhos azuis claro dele lampejaram e ficaram distantes, lembrando de algo, um tempo do qual eu não fazia parte, algo que eu não tinha como me lembrar, como participar.
        De repente, Odrik piscou e sorriu, passando a mão suavemente nos cachos miúdos e definidos da irmã.
        - Você será uma Protetora – ele zombou. – A única humana com sangue de Protetor Ancião. Isso é tipo uma honra, não é?
        - Agora você pode falar? – ela ergueu uma sobrancelha.
        - Aparentemente.
        Yohanna rolou os olhos e bufou.
        - Acho que é sim – respondeu a pergunta do irmão. – Deve ser, eu não sei direito.
        Fazendo uma careta, ela tirou a mão de Odrik do seu cabelo. Não gostava que mexessem no cabelo dela.
        Odrik apenas sorriu e balançou a cabeça em negação.
        - Você não tem jeito mesmo – disse.
        - Estou considerando isso um elogio.
        - De certo modo, foi.
        - Então, obrigada.
        Odrik levantou-se e estendeu uma mão para Yohanna, a qual ela aceitou e se levantou, sacudindo a grama da sua roupa.
        - Vou voltar para a casa de Londrina – ele disse. – Quer vir também ou ainda pretende respirar?
        Sorrindo, Yoh negou.
        - Não, eu ainda quero respirar.
        - Então está bem – disse Odrik. – Não volte muito tarde, Héstia faz um almoço realmente ótimo.
        Esse era Odrik, sempre pensando em comida. Yohanna não entendia como alguém que comia tanto podia ser tão magro, ter músculos tão bem definidos como o irmão. Talvez fosse porque ele não parasse quieto um minuto.
        Mas ainda assim, era injusto com quem tinha de controlar a alimentação feito um louco.
        Não que esse fosse o caso de Yohanna. Ela não precisava se controlar. Ela comia muito, talvez a mesma quantidade que Odrik comia, e ela também nunca ficou acima do peso ideal.
        Dando de ombros enquanto assistia ao irmão se afastar, Yohanna começou a andar na direção oposta, indo para o centro da cidade, tentando se concentrar em qualquer coisa que não fosse seu destino.
        As árvores em Arkadi pareciam mais bonitas, mais cheias de vida. Eram de diferentes cores, rosa, amarelo, azul, vermelho. As flores eram estranhas, algumas Yoh nunca tinha visto antes.
        Havia uma, pequena, mas bonita, que era azul, flores azuis eram tão raras que ela nunca tinha visto uma. Ela era circular, com duas hastes amarelas saindo do centro.
        Era tão delicada – tudo que Yohanna não era e nunca seria.
        Seu peito doeu à medida que seu coração batia contra ele. Ela nunca seria delicada. Ela nunca poderia ser delicada. Mesmo que parecesse, mesmo que ela tivesse um rosto gentil, meigo e doce, ela não era delicada.
        Aquilo era uma máscara, um disfarce.
        Como ela, Yohanna Bourbon, uma pequena garota de quinze anos, dos arredores de Yofer, ia realizar o trabalho de um Adônis? Como ela iria proteger alguém?
        Ela tremeu. Ela sabia a resposta. Ela queria aquilo, por mais bizarro que isso soasse. Como Londrina disse, o sangue do Protetor Ancião corria nas suas veias.
        Subitamente ela soube o que sempre quis, o que ela sempre desejou, mas nunca antes conseguira descobrir o que era.
        Ela sentia o desejo, a ânsia de proteger.
        Era isso o que ela queria fazer. Salvar uma vida.
        A descoberta disso lhe provocou uma sensação esquisita na sua cabeça. Como um zumbido de uma pequena abelha. Yohanna cambaleou, sentiu suas pernas tremerem, seus joelhos cederem. Ajoelhada no meio de um caminho de pedras, cercadas de árvores amarelas, imagens transcorreram diante de seus olhos.
        Ela não estava mais ali, pelo menos ela achava que não.
        De algum modo, ela sentia que estava em outro lugar, era como se ela estivesse sonhando, mas sem estar dormindo. Era como ser a personagem de um sonho, mas sabendo que aquela não é você realmente.
        Estava escuro, o sol já havia se posto em Aurora. Não era um lugar que Yohanna conhecesse. Talvez fosse. Talvez fosse Arkadi. A praia de Arkadi, atrás do palácio. Yohanna nunca chegara perto do mar, o mais perto que chegara fora agora, quando estava a algumas centenas de metros dele, morando a poucas ruas dos muros do castelo.
        Poderia ser lá. Algo dentro dela confirmou sua suspeita.
        O palácio continuava o lá, erguido em sua exuberância e altivez, só que ele parecia mais novo. Sua visão – Yoh classificou assim – era... antiga? Só isso justificava o palácio ser tão belo e esplêndido. Apenas sua recém construção.
        E isso foi há trezentos e cinqüenta anos.
        A cabeça de Yoh latejou, mas ela não voltou para ela mesma. Ela continuava naquele lugar estranho, sendo aquela pessoa estranha com pequenas mãos que usava luvas de couro.
        Ela não sabia se estava sozinha. Tudo estava tão escuro, ela só era capaz de ouvir o som das ondas quebrando na areia. Nada, além disso.
        E então uma luz, uma pequena chama, foi avistada ao longe. A chama se aproximava, assim como o barulho de passos pesados ficava audível. Yoh teria corrido, mas então a garota que ela estava sendo, não queria correr.
        Aquela garota conhecia aquela pessoa que se aproximava. Ela conhecia e queria vê-la.
        A figura parou quando chegou perto o suficiente da garota para que ela pudesse enxergar à minúscula luz do lampião. O estranho erguera-o até seu rosto para se fazer ver.
        Yoh não podia dizer naquela escuridão, mas ela tinha certeza de que era um garoto com cabelos até os ombros, lisos e sedosos, claros como ouro, com mechas de um azul tão suave, tão lindo, que seus olhos pareciam brancos.
        Ela tinha tanta certeza disso quanto tinha de que a garota que ela estava dentro tinha cabelos escuros com cachos caindo até sua fina cintura, com mechas de um tom muito bruto de verde, como seus olhos.
        Tudo tão difícil para aqueles dois. Tudo tão tumultuado, tão proibido. Mas eles se gostavam tanto, eles eram tudo um para o outro.
        A garota sorriu.
        - Damien – ela sussurrou o nome com carinho.
        - Isadora – o garoto chamado Damien disse com um sorriso acompanhando os lábios.
        Então a cabeça de Yoh era dela novamente e ela estava em Arkadi, no caminho de pedras, cercada pelas árvores amarelas novamente.
        Seu coração batia forte contra seu peito, suas mãos agarravam pedrinhas no chão com tamanha força que estava machucando-a. Os olhos dela estavam arregalados e sua boca estava seca.
        Yohanna queria muito saber o que tinha sido aquilo. Porque em um segundo a cabeça dela estava normal e, no outro, ela era uma garota chamada Isadora que sentia algo intenso e forte por Damien, uma coisa que, Yoh não sabia como, ela tinha tanta certeza que ocorrera há trezentos e cinqüenta anos, ali em Arkadi, tão perto de onde Yohanna estava de joelhos agora.
        Aquilo fora a coisa mais absurdamente estranha que já acontecera com ela.
        Não que tivessem acontecido muitas coisas estranhas a uma menina de Yofer, mas então Yohanna podia dizer com certeza que ter visões não era uma coisa normal para qualquer pessoa, não apenas para pessoas nascidas em Yofer.
        Com medo e assustada, Yohanna levantou-se desajeitada e fitou o caminho que fizera até ali. Ela não achava que seu passeio para espairecer tivesse feito muito resultado. Ela apenas conseguira ganhar mais uma coisa para se assustar.
        Yohanna deu meia volta e começou a caminhar lentamente de volta para a casa de Londrina. Ela pensou que talvez fosse melhor voltar para lá e contar essas coisas para seu irmão, para ele lhe dizer o que fazer.
        Pânico tomou conta de seu coração.
        Ela não podia contar. De jeito nenhum ela poderia contar. Ele acharia que ela estava ficando maluca. Ela mesma achava isso. Ela iria guardar isso para ela mesma, não contaria para ninguém, aquilo provavelmente não aconteceria novamente.
        Não contaria para absolutamente ninguém.
        Um segredo.

domingo, 24 de outubro de 2010

4, Confusa e Perdida

4
Confusa e Perdida

O
drik apagou seu lampião, colocou-o numa mesinha de madeira escura no canto da pequena sala de entrada e então tirou seu sobretudo e pendurou-o num dos cabides da entrada.
         As paredes daquela pequena sala eram brancas, a porta de entrada era de vidro, a outra porta, a qual dava a acesso ao restante da casa, era apenas um batente marrom escuro.
         - Pronto – Odrik disse com sua voz grave, olhando através do batente, parecendo procurar alguém. – Está em casa, Yohanna.
         Yoh suspirou cansada.
         Ela sentia-se exausta. Moída por dentro. Parecia que tinha ficado de pé um mês inteiro. Ela queria jogar-se numa cama e apenas dormir dois anos.
         - Venha, acho que é melhor você tomar um banho quente e então descansar. Não se preocupe, Londrina não esta aqui hoje. Ela vai chegar tarde – refletiu Odrik.
         - O que aconteceu? – Yoh ergueu as sobrancelhas.
         - Nada – Odrik deu de ombros. – Ela apenas foi até o palácio ver o rei.
         Os olhos de Yoh ficaram ligeiramente mais abertos.
         Londrina – sua tutora – possuía toda essa influência ao ponto de ir até o palácio falar com o rei no meio da noite?
         Ela só conseguia pensar numa coisa: Uau.
         Mas Yohanna não tinha energia para expressar seus sentimentos naquela hora. Ela apenas assentiu em concordância.
         Ela precisava mesmo tomar um banho quente e descansar eternamente.
         A sala de estar de Londrina era ampla e convidativa, havia sofás vitorianos com estofado cor de creme, detalhes em dourado envelhecido. O tapete no centro do cômodo era felpudo, na mesma cor que as almofadas no sofá. A lareira jazia apagada na parede mais afastada, apagada até o fim do verão, que estava próximo. A chuva torrencial deixava isso bastante claro.
         A escada que ficava naquela sala possuía uma curva para economizar espaço, o carpete era creme, e a madeira dos degraus, assim como o assoalho, era escura.
         No andar de cima, havia um corredor com paredes brancas, o quarto de Yohanna era a última porta. Odrik a deixou bem na frente e entrou no seu quarto, que era defronte para o dela. Havia mais três portas naquele corredor. Yoh suspeitou que fossem mais quartos.
         Mas do que ela sabia?
         Dando de ombros, ela entrou em seu quarto.
         Seu quarto.
         O termo coçou em sua língua. Em Yofer ela dividia um quarto com sua pequena irmã, Fanniz. Agora ela tinha um quarto daquele tamanho apenas para ela.
         Parecia tão egoísta usar todo aquele espaço para uma pessoa apenas. Mas então Yoh pensou novamente. Ela estava em Arkadi, não Yofer. Arkadi era uma cidade grande, um grande centro, a cidade do rei, onde residia o palácio e toda a sua realeza.
          Quer dizer, a realeza que gostava de Arkadi, já que muitos duques preferiam outras cidades maiores. Pelo menos foi isso que Yohanna escutou durante seu caminho até Arkadi.
         O quarto de Yohanna era claramente feminino. Era decorada com papel de parede roxo, quase no mesmo tom de suas mechas e de seus olhos. A roupa de cama era da mesma tonalidade. As cortinas eram de um tom mais escuro.
Havia uma escrivaninha perto da cama de casal, sob a janela do quarto, com um lampião sobre ela. Um armário relativamente grande para guardar roupas. Mas então Yoh não ocuparia nem um terço de todas aquelas prateleiras e cabides para guardar suas roupas.
Ela sequer tinha um vestido de baile.
Mas então ela nunca teve motivos para ter um. Ela nunca fora num baile antes e não via porque iria a um agora.
Balançando a cabeça ela abriu a porta que dava para seu banheiro. Uma banheira de cerâmica embutida à parede com uma ducha em cima. O boxe era de vidro. Uma pia e o vaso sanitário. Ambos de cerâmica.
As paredes eram de ladrilhos brancos, assim como o chão.
Ela ligou as torneiras e esperou a banheira encher.
Água quente. Ela não tinha água quente desse jeito em Yofer. Yohanna sempre tinha de esquentar sua água no fogo se quisesse um banho quente. Ali não. Na cidade real, a água quente saia dos canos.
Em Yofer eles não tinham água encanada. Nada de canos. Um poço para a comunidade inteira.
Tudo era tão diferente.
Será que Odrik já tinha se acostumado a isso? A todo esse... luxo? Yohanna tinha suas duvidas de que ela iria se acostumar a isso. Era bonito, sim, mas não era seu lar. Não era sua casa.
Era a casa de sua tutora, Londrina, não dela.
Yohanna tirou suas roupas molhadas e as largou dentro da pia para não molhar o chão seco. Então ela largou sua mochila também molhada num canto do banheiro pequeno.
Ela entrou na banheira, a água quente fazendo seu corpo formigar em satisfação. Ela sentou-se e então fechou seus olhos.
Tudo tão diferente.
Tudo tão novo.
Ela estava com medo.
Medo do que estava por vir.


Na manhã seguinte, Yohanna acordou com dores nas suas pernas. Suas panturrilhas reclamavam a distância percorrida.
         Ela vestiu uma calça de linho preta e uma blusa de linho branca que haviam secado durante a noite. Por cima ela colocou um colete de couro preto. Ela gostava de coletes. Eram bonitos. Calçou suas botas e então ela desceu, seu estomago reclamando comida que não fossem vegetais ou frutas que ela comera durante duas semanas inteiras.
         Ela precisava de algo que realmente sustentasse.
         - Bom dia, minha senhorita – uma mulher com cabelos grisalhos com suaves mechas pretas, presos num firme coque no topo de sua cabeça disse sem se virar da bancada onde estava cozinhando algo realmente cheiroso.
         A mulher vestia um vestido bordô, com um avental branco por cima de toda sua roupa.
         - Bom dia – Yohanna disse sem saber ao certo se a mulher se referia a ela quando disse “minha senhorita”.
         A mulher virou-se para revelar um rosto com rugas na testa, olhos pretos no mesmo tom suave de suas mechas, um rosto vivido, que carregava a aura de quem já vivera muitos anos cozinhando naquela cozinha.
         - A senhorita demorou a chegar – disse a mulher com um tímido sorriso. – Seu irmão chegou há três noites montado em um cavalo.
         - Ah – Yoh disse. – Por isso então. Eu não tinha cavalo algum.
         A mulher pareceu espantar-se.
         - Você não sabe montar, senhorita? – ela pareceu incrédula.
         - Não, eu sei montar – Yoh sorriu meio sem graça. – Tive aulas com um mentor, aulas de montaria e combate, desde que tinha nove anos, mas minha família não tinha um cavalo para eu viajar.
         A expressão da senhora suavizou e então ela sorriu.
         - Mas a senhorita chegou, enfim – disse. – Vamos servir-lhe uma omelete enquanto senhora Londrina não desce. Aliás, eu me chamo Héstia.
         Yohanna sorriu aliviada.
         - Obrigado, Héstia.
         Comida. Comida de verdade.
         Aquela omelete parecia a coisa mais gostosa do universo quando Yohanna levou uma garfada a boca e esta chegou ao seu estomago.
         Héstia serviu um copo de suco de laranja fresco para Yoh e ela não podia desejar coisas melhor do que aquela.
         Quando terminou, Yohanna ficou feliz de ficar sentada ali, conversando com Héstia, enquanto Londrina e nem Odrik desciam.
         - Oh, Héstia – uma voz feminina muito jovem para ser de uma tutora, exclamou deliciada ao entrar na cozinha. – Sua omelete? Eu adoro sua omelete.
         - Senhorita Pandora – Héstia sorriu e serviu mais um prato com omelete e mais um copo com suco de laranja.
         Yohanna virou-se para ver quem era a garota que adentrara na cozinha. Pandora tinha cabelos longos e escuros, profundamente lisos, com mechas vivamente laranjas. Seus olhos eram laranja também. Seus lábios eram finos, mas eram bastante rosados.
         Ela usava uma calça jeans azul claro e uma blusa de malha branca, simples, com sapatilhas brancas.
         - Oh – Pandora disse quando avistou Yohanna, abrindo-lhe um grande sorriso. – Você deve ser Yohanna. Muito prazer. Seus olhos são tão legais!
         Pandora lhe estendeu a mão direita e Yoh levantou-se para apertá-la, com um sorriso pequeno e tímido nos lábios.
         Ninguém nunca lhe dissera que seus olhos eram legais. Quer dizer, todos lhe conheciam em Yofer, estavam acostumados ao seu violeta desde que ela era um bebê. Mas então na noite anterior, Dem lhe disse que ele nunca tinha visto ninguém com olhos violeta antes. e ele vivia numa cidade grande.
         - Vejo que já conheceu a pequena Yohanna – disse uma mulher alta, esbelta, rosto triangular, lábios finos como os de Pandora, feições parecidas com as dela, cabelo escuro e liso como o de Pandora, com mechas laranjas e olhos laranjas numa tonalidade remotamente mais suave que a de Pandora.
         Yoh não precisou pensar muito para associar que aquela mulher era Londrina e Pandora era sua filha.
         - Sim, mãe – Pandora disse e acomodou-se em sua cadeira junto à mesa. – Agora preciso comer, se ninguém se importa.
         Londrina sorriu ternamente e rolou os olhos.
         - Sou Londrina Kaylt, sua tutora, mas disso você já deve saber – disse a mulher com olhos laranja.
         Yohanna sorriu novamente e agradeceu internamente pela mãe não demonstrar o mesmo interesse que a filha pelos olhos violeta dela.
         - Hum, sou Yohanna Bourbon – ela disse tolamente. – Mas você já deve saber, também.
         Londrina acenou e sorriu mais uma vez antes de ir até a mesa e sentar-se junto da filha. Nisso tudo, Odrik resolveu aparecer com seus cabelos loiros e azuis despenteados.
         Quando ele passou por Yohanna na cozinha, ele pareceu sentir a necessidade louca de bagunçar o cabelo de sua irmã também. Yoh fez uma careta e então suspirou, rolando os olhos.
         - Querida – Londrina disse e Yoh surpreendeu-se ao descobrir que Londrina estava se referindo a ela e não à Pandora.
         - Sim? – Yohanna respondeu com uma pergunta, atordoada demais com aquele afeto para dizer algo mais coerente.
         - Você poderia vir comigo até o escritório? – Londrina sorriu um pouco. – Preciso falar com você.
         Yohanna assentiu meio confusa, porém, ela não devia ter se surpreendido tanto com aquele convite. Era de se esperar que Londrina quisesse falar com ela.
         Embora o quê, ela não tinha certeza.
         - Claro – Yoh disse.
         Londrina levantou-se da mesa e Pandora a encarou perplexa, assim como Héstia fez.
         - A senhora não vai tomar seu café, senhora Londrina? – Héstia perguntou tentando controlar sua perplexidade.
         Hum, aparentemente Londrina não deixava suas refeições intocadas.
         - Comerei mais tarde, Héstia – disse ela calmamente, como se não notasse a nuvem de perplexidade ao seu redor. Apenas Odrik parecia realmente alheio a tal nuvem, mas ele estava devorando sua omelete, então ele não contava. Yohanna tinha uma teoria de que o irmão entrava em algum tipo de transe quando estava ingerindo algum tipo de alimento.
         Ao que tudo indicava, ela estava certa o tempo todo sobre isso.
         Londrina conduziu Yohanna até uma porta que ela não havia notado antes, na sala de estar, dando vista a uma pequena sala com uma escrivaninha no centro e prateleiras cheias de livros nas paredes. Londrina fechou a porta quando entrou.
         Ela sentou-se na cadeira de couro atrás da escrivaninha e fez sinal para Yoh sentar-se a sua frente. Yoh o fez.
         - Yohanna Bourbon – Londrina disse.
         Yoh achou que ela estava apenas tentando achar um meio para começar a conversa, assim, permaneceu em silêncio até que Londrina começasse a falar novamente.
         - Você sabe por que seus pais lhe mandaram para cá, Yohanna?
         Londrina estreitou os olhos com cautela do outro lado da mesa. Yoh negou com a cabeça.
         - nada exceto que tudo tem a ver com uma promessa que eles fizeram – disse Yoh. – Eu também não sei por que Odrik veio, já que eles não me disseram sobre isso.
         A mulher assentiu.
         - Quando você deixou Yofer, mandei uma mensagem a Anabette e pedi para que mandassem Odrik também, apenas para você não sentir-se tão só.
         Yohanna assentiu com a cabeça.
         Tudo bem, até aí, ela podia engolir. Mas então alguém lhe diria por que ela estava ali afinal de contas?
         - Tudo bem – Yoh fechou os olhos e os abriu em seguida. – Certo, eu j agüentei tanto. Peço desculpas por ser tão direta, mas eu preciso saber por que eu fui mandada embora da minha própria casa. Eu preciso saber o que é essa promessa.
         Atenta e cautelosa, Londrina assentiu.
         - Eu sei. Foi por isso que lhe chamei aqui para o escritório – Londrina levantou-se e depois de roçar com os dedos alguns exemplares, ela tirou um velho livro empoeirado de uma das prateleiras, colocando-o sobre a mesa e voltando-se a sentar. – Eu vou lhe contar tudo.

3, Arkadi, uma Nova Vida

3
Arkadi, uma Nova Vida

Q
uando chegaram à cidade, Yoh suspirou pesadamente.
         - Droga – murmurou.
         Agora que ela estava tão perto de Arkadi, tão perto de Londrina, ela não tinha certeza se queria de fato encontrar ambas.
         Algo se remexeu na boca do seu estomago.
         Há quanto tempo ela não comia? Mas isso não era fome. Oh, não. Era receio. Ansiedade. O que aconteceria agora? Era encontrar Londrina e simples assim? Ela a aceitaria numa boa? Ela sequer sabia que Yoh estava indo ao seu encontro?
         - Hum, Yoh?
         - O quê? – Yoh respondeu sem tirar os olhos inquietos da cidade abaixo dela.
         Era só descer a estrada ao lado daquele barranco que então eles estariam em Arkadi.
         Várias casas de alvenaria instaladas à esmo, sem um padrão definido, ao redor do que deveria ser uma praça, não dava para ver naquela escuridão, muito menos com toda aquela chuva.
         Yoh sentia frio. Suas tremiam, mas então ela não tinha certeza se isso era frio.
         Talvez fosse apenas uma reação dos seus sentimentos.
         Um castelo pairava ao longe, no que poderia ser descrito como final da cidade. Além do castelo, era um grande oceano com águas profundas e escuras.
         Grandes muros de pedra cercavam o castelo.
         Era uma estrutura meio gótica, sombria, porém encantadora ao seu modo. Não lhe dava arrepios. Yoh sentia-se... segura. Como se aquele fosse seu lugar. Como se Arkadi fosse seu lugar.
         Ela sentiu um arrepio na sua espinha.
         Não.
         Aquele não era seu lugar. Yofer, aquela era sua cidade. Onde estava sua pequena irmã que chorara tanto a sua partida, onde estava seu irmão mais velhos, Odrik, que não chorara, mas sentira a dor ao seu modo.
         Seus pais não choraram.
         Eles sorriram.
         Foi isso que deixou Yohanna com raiva.
         Porque eles sorriram quando sua filha estava indo embora, deixando sua família e aqueles que ela amava sem nem sequer saber por quê.
         - Yoh, você me ouviu? – Dem pegou-a pelos ombros, virando-a para ele.
         Yohanna piscou algumas vezes, o rancor estava presente no seu coração assim como os seus batimentos cardíacos indicavam sua vitalidade.
         Ela sentia tanta raiva dos seus pais agora.
         Ela sentia raiva dela mesma por se sentir segura em Arkadi.
         Yohanna não queria sentir-se segura ali.
         Não.
         Ela queria apenas odiar aquele lugar.
         - Desculpe – ela disse tentando apagar o tom nervoso na sua voz. Aquela raiva não era dirigida à Dem. Ele fora gentil com ela na medida do possível (ninguém arrancou a cabeça de ninguém), então ela só queria dizer obrigado e ir embora.
         - Certo, tudo bem – ele sorriu e largou-a, dando um passo para trás.
         - O que você estava dizendo? – Yoh incitou.
         - Perguntando se você sabe onde Londrina mora.
         - Hum, isso – Yohanna lutava para manter sua mente focada. – Não, não sei.
         - Certo, quer que eu te leve? – Dem perguntou. – Mas tudo bem se não quiser. É fácil achar a casa dela, todos sabem onde ela mora. Não seria difícil você encontrar outra pessoa pra te ajudar nisso.
         - Tudo bem – Yohanna suspirou e sorriu contra sua vontade. – Não quero ter de passar pela coisa da adaga mais uma vez.
         Dem sorriu com uma pitada de malicia nos olhos vermelhos.
         - Sim, você é tremendamente assustadora com aquela adaga nas mãos.
         Rolei os olhos e novamente contrariada, Yohanna sorriu.
         Quer dizer, não era culpa dela. Era engraçado, de fato.
         Sem dizer mais nada, os dois começaram a descer a rua ao lado. A chuva era ótima, sim, Yohanna sabia que era importante devido ao seu planeta tão seco, mas francamente, isso não precisava deixá-la molhada dos pés a cabeça, como ela estava agora.
         - Hum, Dem? – ela estava tão cansada.
         - O que foi? – respondeu distraído.
         - Porque você estava lá atrás, naquela floresta perigosa sozinho?
         Ele sorriu um pouco quando Yohanna usou seus termos anteriores, mas então o sorriso desvaneceu.
         Ok, aquilo fora estranho. Ele era tão extrovertido e sorridente. Yohanna pode perceber isso sobre a personalidade de Dem na última hora. Mas aquela sombra no seu rosto, aquela expressão tão... dolorida e rancorosa, não era uma coisa que combinasse com o rosto bonito e alegre dele.
         Não, havia alguma coisa por trás daqueles olhos escarlates que ele não havia mencionado e que ela podia ver agora.
         Mas aquilo importava realmente?
         Não.
Não de verdade.
- Caminhando – respondeu finalmente. – Para pensar.
- Eu costumava fazer isso. Em Yofer – Yohanna disse sonhadora, mergulhando em suas recordações mais uma vez.
Ela precisava dormir. Logo.
- Yoh – Dem disse cautelosamente. – Posso lhe pedir uma coisa?
- Claro – respondeu ela sem nem sequer se importar de verdade.
Cansaço era só o que ela conseguia sentir. Duas semanas. Duas semanas inteiras andando. Ela se lembraria como dormir em uma cama?
Oh, ela iria. Ela iria sim. Ela podia sentir o lençol macio e suave sob seu corpo...
- Não conte a ninguém que eu estive com você – Dem disse sem rodeios. – Não conte nada sobre mim, na verdade. Será melhor para você nem mencionar que você me conhece.
Agora o cansaço não era mais prioridade.
Yohanna encarou o rosto de perfil de Dem.
- Por quê? – perguntou ela.
Curiosidade era uma coisa surpreendentemente tentadora.
- Porque sim. Você logo irá saber, pra ser sincero.
Ela ergueu uma sobrancelha.
Definitivamente o cansaço não era mais uma prioridade.
- Como assim? Saber o quê? – indagou.
Dem murmurou o que Yohanna achou ser um palavrão e então encontrou os olhos dela.
Aquele vermelho – aquele vermelho que de inicio ela temera – estava tão vulnerável naquele instante que ela vacilou por um segundo.
Entretanto, eram apenas os olhos que demonstravam tal vulnerabilidade. Sua expressão era dura e sua voz ainda mais.
Mas os olhos... Yohanna podia ver o que ele sentia só pelo brilho tão triste neles.
- Provavelmente você irá saber pela manhã. Você nem vai querer falar comigo outra vez quando souber disso.
- Acho que sou madura o suficiente para responder por mim – Yohanna respondeu um pouco contrariada.
Ela nunca acreditou em boatos, mesmo em Yofer que era uma cidade tão pequena que boatos eram a distração mais divertida que as senhoras de mechas brancas em seus cabelos escuros ou claros praticavam.
Yohanna sabia muito bem discernir fatos de boatos. Ela também tinha idade o suficiente para escolher no que acreditar.
Dem abriu um pequeno sorriso torto. Como o primeiro sorriso que ela o viu abrir.
- Resignada, também – ele disse. – Teimosa e resignada, mais alguma coisa? Ah, claro, determinada para vir de Yofer até aqui sozinha.
         Ela permaneceu em silêncio enquanto ele falou. O que ela diria? Ela não tinha nada a dizer.
         Ela apenas queria saber sobre as coisas. Ela queria saber sobre sua vida. Queria saber que boato era esse do qual Dem tanto falava. Queria saber quem diabos era Londrina e porque ela quem cuidaria de Yohanna.
         Quer dizer, se cuidaria.
         E isso era um grande se.
         Deméter sorriu e rolou os olhos.
         - Você nem está me ouvindo – disse, mas não estava se queixando. Yoh corou um pouco. Ela não estivera ouvindo mesmo. Estava ocupada demais tendo pena de si mesma. – Apenas não diga sobre mim. Não toque no meu nome. Vai ser melhor para você.
         Sem mais nada para dizer ao estranho Dem, Yoh apenas concordou com a cabeça, abalada demais com o que lhe esperava mais a frente.
         Ela esperava não ter um grande susto. Na verdade, ela esperava que Londrina deixasse-a dormir numa cama quente e confortável. Ela esperava que tivesse roupas secas, tendo em vista que as que estavam em sua mochila estavam completamente encharcadas aquela altura.
         Yohanna estava começando a tremer. Ela estava com tanto frio.
         Os pés dela faziam um barulho engraçado quando pisavam na lama, assim como os de Dem. As botas de ambos estavam cheias de água. Yoh sentia as poças sob seus pés. Ela teria bolhas.
Isso era perfeito, de um modo irônico, obviamente.
Arkadi era uma cidade grande, agora que ela olhava de perto. Sem comparação com Yofer. Yofer era um vilarejo, lugar onde os retirados moravam. Quem não queria participar da monarquia e dos assuntos da realeza, simplesmente se recolhia em cidades tão afastadas que as conseqüências e as ordens não chegavam tão longe.
Os pais dela não gostavam muito de seguir regras, por isso foram para Yofer.
Yoh nunca viu problemas, mas também nunca gostou muito da idéia de pessoas ditando o que você tinha de fazer.
Parecia pouco justo.
Mas, se não fossem os reis, príncipes, duques e marqueses, quem manteria a ordem e cortesia dentre as pessoas? Se não existisse a realeza, Yoh apostaria tudo que lhe restara – que não era nada, na verdade – que haveria gente se matando para conseguir o poder.
Tolos, era só o que ela pensava deles.
O castelo se agigantava perante aquela cidade, ao longe, mas imponente. Seus grandes muros deixavam claro que lá só entraria convidados.
Não que Yoh quisesse pisar lá.
Nunca, na verdade. Ela nem sequer pensou nisso. O que teria lá? Um monte de pessoas mesquinhas que adoram enfeitar as paredes com ouro e sentar em tronos de bronze com tiaras de prata sobre as cabeças?
É, Yohanna não tinha tais ambições fúteis e tolas. Ela apenas queria viver à sombra, se possível. Ela não queria atenção em demasia. Ela preferia não ser notada.
Não que ela achasse que alguém olharia para ela. Exceto Dem. Mas então eles estavam os dois numa floresta sozinhos. Se ele não olhasse para ela, olharia para o coelho. E Yoh achava que era um pouco mais atraente que um coelho.
Mas o que então ela sabia sobre isso?
Absolutamente nada.
- A casa de Londrina é a mais perto dos muros do castelo – Dem quebrou o devaneio de Yoh, tirando-a de uma sufocante apreensão.
Ela olhou para ele em meio aos pingos de chuva que deixavam tudo tão molhado e difícil de ver.
- Hum – Yoh balbuciou. – Acho que posso encontrar sozinha.
Dem sorriu.
- Não, você não pode – disse. – Há tantas casas aqui, Yoh. Praticamente o triplo do triplo do que você via em Yofer.
Yoh olhou fixamente para as monstruosas construções a sua frente. Tudo tão mais rico, tão diferente do pequeno e modesto vilarejo onde todos dividiam o leite e os pães.
Ali, parecia ser cada um por si. Nada de cafés da manhã comunitários nos domingos. Nada de divisão de leite e pão.
Ela engoliu em seco.
- Eu te acompanho até lá. Não é tão longe quanto parece – disse Dem.
Yoh só foi capaz de assentir, sem confiar na sua voz.
Seu peito se contorceu de saudade de sua família. Yofer, sua pequena e amada terra. Seu lar.
- Yohanna!
Yoh ergueu a cabeça completamente confusa com o chamado. Não havia ninguém na rua àquela hora da noite, as luzes das casas estavam a maioria acesas, mas nenhuma pessoa na rua.
Mas então ela conhecia a voz.
Dem a encarou meio confuso, depois estreitou seus olhos para a noite.
- Parece que alguém conhece você – ele disse.
Yoh olhou para os lados, seu coração transbordando de esperança. Ela não estava tão só então.
O homem com cabelos loiros e mechas azuis saiu da escuridão carregando um lampião aceso numa das mãos. O sorriso convidativo, de boas vindas. O homem lindo que a esperava.
Ela sorriu amplamente, seus lábios desacostumados aquela ação parecia doer com o ato.
- Odrik! – ela exclamou e foi de encontro com o homem de vinte anos, olhos tão azuis quanto as mechas em seus cabelos.
Seu irmão, seu irmão Odrik estava ali. Ela nem conseguia acreditar.
Yoh jogou seus braços ao redor da cintura do homem – era só onde ela alcançava com seu diminuto tamanho. Seu irmão não era mais alto que Dem, mas era mais alto que ela. 1,85m, bem distribuídos. Suas mãos grandes pousaram em suas costas e lhe acariciaram.
Odrik estreitou seus olhos para enxergar alguns metros a sua frente.
- Quem é aquele? – perguntou.
- Hum, ele me ajudou a encontrar o caminho, na verdade – Yoh respondeu e se virou. – Dem!
Deméter, que já estava indo embora, parou abruptamente e virou para encará-la. Ela não podia dizer ao certo sua expressão com toda aquela chuva e escuridão.
- Yohanna – disse Dem, sua voz calculada, seus olhos escarlate indo de Odrik para ela.
- Obrigada – disse Yoh ainda com seu sorriso enorme nos lábios. – Esse é meu irmão, Odrik.
A expressão dele não se alterou. Ele olhou para Odrik, fez um aceno de cabeça e então continuou andando, fazendo seu caminho para qual seja sua casa.
Yohanna olhou para seu irmão mais velho.
- Odrik – ela disse com alivio, toda a tensão daquelas duas semanas, todo o medo de ficar sozinha exalando. – Tão bom ver você.
Ele sorriu.
- Eu sei – provocou. – Difícil ficar longe de mim.
Yoh rolou os olhos. Não queria começar a discussão de sempre. Seu irmão era tão metido. Eles sempre começavam uma discussão toda vez que uma brincadeira dessa vinha à tona.
Mas Yoh não queria brigar agora. Não quando estava tão feliz em vê-lo.
- Vamos, esta chovendo muito – Odrik puxou-a para debaixo de seu grande casaco de pele de animal. Era grande e marrom, fofo e quente. Ela agradeceu internamente pelo calor e pela secura do seu interior. – Tudo bem com você?
- Sim – Yohanna suspirou e sorriu como uma boba novamente. – Agora está tudo bem.