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domingo, 24 de outubro de 2010

2, Promessa

2
Promessa

D
eméter – para desolação total de Yohanna – desatou a rir.
         Seus ombros sacudiam enquanto ele fazia isso e avançava para o lado de Yohanna. Ele balançou a cabeça em descrença.
         - Você é teimosa – apontou ele.
         Yohanna rosnou e rolou os olhos em resposta àquilo.
         - Você é teimosa para uma pessoa do seu tamanho – continuou ele ignorando a reação de Yohanna.
         Aquilo a encheu de ultraje. Ela era pequena sim, mas perto dele que era grande demais. Ela tinha 1,68m de altura, não era baixo. Era, obviamente, perto de uma pessoa de 1,94m, como Deméter.
         - Se você esta tentando me ofender--
         - Não – Deméter olhou pensativo para Yohanna, ele não sorria e seus olhos escarlates refletiam sua expressão pensativa. – Não, eu gosto disso.
         Yohanna rolou os olhos e bufou novamente. Claro que ele estava tentando ofendê-la. Como ela pode ter medo dele? Ele era só... irritante.
         Uma pessoa muito irritante, na verdade.
         - É só me dizer que caminho tomar – Yohanna resmungou. – Só dizer onde fica Arkadi, se você souber.
         Ele olhou para ela por mais alguns segundos antes de apontar a estrada da direita.
         - Obrigada – Yohanna disse e começou a andar naquela direção.
         A mesma direção que Deméter começou a ir também.
         - O que você pensa que esta fazendo? – ela virou-se e disse à ele com irritação fluindo ao seu redor.
         Ela não queria ninguém ali com ela. Yohanna já estava suficientemente arrasada sozinha, mais alguém só faria as coisas piores.
         Pelo menos era isso em que ela acreditava.
         - Eu? – Deméter disse em falsa inocência. – Andando até Arkadi, como você.
         Yohanna ergueu uma sobrancelha loira, coisa que ela demorou muito para aprender a fazer.
         - Não, você não vai – disse ela.
         Deméter pareceu achar aquilo irrelevante.
         - Eu moro lá – disse ele voltando a andar, passando por ela, esbarrando levemente em seu ombro. Não foi agressivo, apenas irritante, como metade das coisas que ele fazia, Yohanna notou. – Pode ficar aí e esperar amanhecer se quiser. Não está longe, pra dizer a verdade, você chegaria em uma hora ou duas, se for lenta. Mas estou indo. Bom conhecer você, Yohanna.
         Respirando fundo algumas vezes, Yohanna resmungou algum palavrão qualquer, rolou os olhos e se colocou para andar.
         Uma ou duas horas? Ela não era lenta. Ela chegaria em uma hora, no máximo. Yohanna queria dormir num colchão esta noite, não em cima de folhas ou qualquer coisa remotamente macia que ela pudesse achar.
         Para piorar um pouco a situação, a noite subitamente ficou fresca e gotas começaram a cair.
         Chuva.
         Há quanto tempo não chovia? O verão inteiro. Oito meses sem nenhuma gota de água caída do céu.
         Aurora era tão seca e quente que a chuva era uma coisa ótima. A chuva fazia Yohanna sentir saudade de casa – a casa que ela forçadamente deixara há duas semanas.
         - Tudo bem – disse Yohanna meio que para si mesma ou para Deméter, ela não sabia ao certo. – Eu vou.
         Ela pode ouvir a risada de Deméter a alguns metros dela. Yohanna correu um pouco para alcançá-lo. Se ela ia andar com ele até Arkadi, melhor que tivesse um garoto com todo aquele tamanho suficientemente perto dela caso algo com dentes enormes aparecesse.
         Quer dizer, olhe pro tamanho dele. A coisa com dentes grandes provavelmente escolheria devorá-lo primeiro. Ele tinha muito mais carne que ela.
         Yohanna sorriu um pouco, cheia de malicia, perante aquele pensamento reconfortante.
         - O que foi? – Deméter perguntou confuso, o que tirou Yohanna de seus pensamentos sobre as possíveis bestas devoradoras de Deméter.
         - Hum – ela balbuciou e sorriu um pouco mais. – Nada.
         A chuva continuava caindo e Yohanna já estava encharcada. Seu cabelo grudava em sua testa, uma mecha violeta em seus olhos, obstruindo a sua visão. Ela tirou o cabelo do seu rosto.
         Anabette lhe disse para chegar até Arkadi, para falar com Londrina. Mas quem diabos era Londrina?
- De onde você vem, Yohanna? – Deméter perguntou. – Você não é daqui.
         - Yofer – ela respondeu.
         Ele assobiou por sob sua respiração.
         - Isso é bem longe.
         - Eu sei – Yohanna balançou a cabeça frustrada e cansada.
         Toda a exaustão daquela viagem que já durava duas semanas estava se fazendo presente agora. Era tão desgastante.
         Ela queria voltar. Ela queria a segurança dos portões de Yofer, a segurança da sua casa quente, com sua família.
         Ela queria saber por que ela tinha que ir embora.
         - Por que vir para Arkadi? – Deméter perguntou. – Por que não Gatrine ou Hujeih? São cidades maiores e muito mais perto de Yofer.
         Yohanna balançou sua cabeça em negação.
         - Não foi uma escolha minha.
         - Isso soa injusto.
         Yohanna virou seu rosto para encarar Deméter. Era injusto, claro que era. Mas ela não esperava que ele dissesse isso.
         Deméter não olhava para ela, mas Yohanna podia ver seu perfil. Ele olhava para frente, um ar pensativo pairando em todo seu redor, seu nariz era levemente torto, indicações de que já fora quebrado anteriormente.
         Isso atiçou sua curiosidade.
         Ela queria saber como ele quebrara o nariz. Ela queria saber quem fora para poder apertar-lhe a mão.
         - De novo, isso não foi minha escolha – Yohanna suspirou.
         Ela queria realmente saber por que sua vida não se baseava em suas próprias escolhas. Ela queria saber que promessa era essa que seus pais fizeram que era tão importante ao ponto de Yohanna ter de deixá-los para sempre.
         Porque eles não quebrariam sua promessa. Isso não era uma opção para eles. Nunca foi.
         Uma pontada de raiva e desamparo, um pouco de ressentimento e dor, pinicou seu coração.
         - Eles preferiram perder a filha a quebrar a promessa – Yohanna murmurou para si mesma.
         Ela não contava que Deméter ouvisse sua reclamação que deveria ter sido muda.
         - O que? Quem são eles? – indagou.
         - Nada – Yohanna apressou-se.
         Que sentido tinha me mais alguém ficar sabendo sobre a promessa dos Bourbon? Yofer inteira sabia disso. Um calor tomou conta de Yohanna quando ela lembrou-se dos olhares que as pessoas lhes lançavam em Yofer.
         Raiva. Dor. Pena. Uma vez ela até recebera um de inveja.
         Mas por quê? Por que tanto rancor em relação a ela se nem Yohanna sabia o que estava acontecendo com ela? Por que ela tinha de deixar Yofer, a cidadezinha minúscula que ela tanto adorava?
         foram perguntas que ninguém respondeu à ela. Perguntas que ela tinha em seu coração.
         “Nós prometemos” seu pai lhe suplicara. “Nós prometemos que não contaríamos”.
         Ela tinha vontade de gritar para a noite, para a chuva. Ela queria respostas. Ela queria o motivo, a razão pela qual trocaram sua vida.
         O que afinal, valia isso? Seus pais trocando a vida de sua própria filha. À troco de quê?
         - Você conhecesse alguém chamada Londrina? – Yohanna quebrou um silêncio que já durava alguns minutos.
         Deméter pareceu um pouco surpreso à menção do nome.
         - É, conheço sim – ele estreitou seus olhos, agora olhando para ela. Yohanna olhava para a frente, mas sentia o olhar intenso e rubro em seu rosto. – Por quê?
         Sinceramente? Ela não sabia direito.
         - Hum... – Yohanna lutou em sua mente para encontrar alguma resposta. – Na verdade, eu não sei.
         Ela olhou para ele, encontrando seu olhar vermelho.
         Deméter ergueu uma sobrancelha.
         - Como assim você não sabe? – sua voz era desconfiada.
         - Algo complicado – murmurou baixinho, voltando a encarar a estrada de terra à sua frente.
         Ao longe, através da chuva que embaçava sua visão, ela foi capaz de avistar algumas luzes, pequenas tochas ao longe.
         Arkadi.
         - Temos mais algum tempo de caminhada – ele apontou.
         Yohanna suspirou.
         - Minha vida é complicada, Deméter – Yohanna suspirou mais uma vez.
         - Dem – disse ele.
         - O quê? – Yohanna questionou, olhando para ele.
         Deméter piscou e olhou para frente novamente.
         - Prefiro Dem. É meu apelido.
         - Oh – Yohanna sorriu. – Certo, Dem.
         Após alguns minutos sem dizer nada, Deméter – ou melhor, Dem, como o garoto antes sem nome refere ser chamado – irrompeu com a cálida noite, onde o único som que se ouvia eram o dos pingos da chuva batendo contra as folhas e o chão.
         - Como alguém de Yofer pode ter uma vida complicada? – ele estava se divertindo com isso.
         Certo. Dem parecia se divertir com qualquer coisa. O que era irônico porque Yohanna não gostava de ver sua vida sendo ridicularizada. Principalmente Yofer.
         Está certo que Yofer não era exatamente uma cidade movimentada, mas era uma vida pacata, retirada, maravilhosa em todos os sentidos.
         Mas então Yohanna estava cansada demais e decidiu que não valia à pena entrar numa discussão sobre o assunto.
         - Yofer é ótima – Yohanna disse.
         - Não disse que não era – Dem defendeu-se. – Mas é que é uma cidade tão afastada que eu fiquei me perguntando em como uma pessoa poderia ter uma vida conflitante lá. Por que uma pessoa gostaria de deixar Yofer, é o que estou querendo dizer.
         Yohanna engoliu em seco.
         Ela não queria ter saído de Yofer. Ela crescera lá. Vivera toda sua vida em uma cidade da qual gostava, com pessoas que ela gostava.
         E então veio a noticia há um mês.
         “Você terá de ir embora, Yohanna” Anabette chorara e abraçara a filha que a afastou com um movimento brusco.
         “Por quê?” Yohanna perguntara com um sentimento de traição crescendo em seu peito.
         Eles a estavam mandando embora.
         Sua irmã pequena, de cindo anos, Fanniz, fez um apequena careta e começou a chorar também.
         “Por que Yoh tem que ir, mamãe? Por que ela não pode ficar com a gente?” a pequena Fanniz perguntara em meio às lágrimas.
         A expressão da mãe se contorceu em dor ao ver a caçula chorando e Yohanna cheia de rancor a sua frente. Anabette começara a soluçar também.
         “Oh, querida, entenda. Foi uma promessa feita há muitos anos. Você precisa ir embora, querida, cumprir seu destino”.
         - Yohanna? – Dem tirou-a do seu devaneio.
         Ela olhou meio atordoada pela sua lembrança. Pela expressão de Dem, ele parecia estar a um tempo chamando o nome dela.
         - Yoh – Yohanna corrigiu-o com uma pontada no coração, lembrando-se de sua pequena irmã Fanniz.
         - O quê? – Dem perguntou confuso.
         - Yoh – repetiu ela. – Me chame de Yoh.

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